Radegundis e Mário: Viver e morrer
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Jaldes Reis de Meneses
A súbita notícia de morte, o redemoinho de uma notícia em cima da outra, de dois professores – Radegundis Feitosa e Mário Assad – me deixou com um sentimento incomum de consternação, parecido com a vontade de poesia, que só pode ser expiado pela catarse da escrita. A cerimônia de adeus aos dois companheiros de profissão me fez voltar à mente os temas da vida e da morte num grau parecido com o da morte de meu pai, há dois anos passados.
Não fui amigo íntimo de nenhum dos dois, cruzaram o meu caminho na condição de colegas de profissão com os quais em certas ocasiões compartilhei combates e atividades em comum e de que passei a admirar o evidente valor pessoal. Uma das orações do Padre Vieira sentencia: os discursos de quem não viu, são discursos, os discursos de quem viu são profecias. Com a devida vênia de Vieira, vou dar uma de profeta do passado. Tenho a dizer por testemunho direto de quem viu: foram duas vidas plenas de realização do talento. Eram duas personalidades, talvez uma desconhecida da outra - não sei -, que, ao menos aos meus olhos em retrovisor, agora se completam.
Por manifesto, me abstenho de demorar em dissertar a genialidade musical de Redegundis, como também das contribuições de Mário Assad, trabalhador profícuo, ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, principalmente a Internet, na UFPB e na Paraíba. Artista e cientista, ambos eram figuras dotadas de enorme senso de humor, sustentado em alta voltagem de senso prático. Se couber um truísmo, a gente não repara, mas a vida realmente é bela. Não estamos na presença de generais nem de celebridades, de heróis sacrifiçais nem de profetas, mas de talentos de vida comum, cuja ventura encontra-se na fidelidade ao desejo de realizar a condição de músico e de físico.
Alguns, arguindo uma psicanálise simplificada, tendem a considerar a impossibilidade de realização do desejo um poço permanente de infelicidade, de derrota lúgubre do sujeito. É preciso ir devagar com o andor: para mim, a fidelidade do desejo guarda distância do ato de sublimar o ato sexual em arte e ciência, explicação do senso comum psicanalítico. A fidelidade ao desejo define a vida tanto de Radegundis como de Mário. Fidelidade é diferente de fé religiosa, que pode vir a ser uma inerte contemplação metafísica; em ambos, Radegundis e Mário, ao contrário, a escolha em ser músico ou físico, estava além da simples inserção no mercado de trabalho, eram projetos criativos em execução por toda a existência. Por isso, o senso de humor e o senso prático eram característicos nos dois. Não sei bem de Mário, mas Radegundis carregava o trombone por todo lugar, a qualquer momento de um encontro, sacava do instrumento e punha-se a tocar maravilhosamente: isso é que é fidelidade ao desejo, aquilo que equivocadamente algumas pessoas chamam de obsessão do artista ou do cientista, nada tem a ver com alienação.
Procuro fazer uma distinção entre a admiração à singeleza dos que conseguiram a felicidade através de uma persistente fidelidade ao desejo e a falsa grandiloqüência do culto dos grandes ídolos. Os ídolos são como semideuses, preenchem involuntariamente os nossos recalques, mas não necessariamente são fieis ao próprio desejo, por isso muitos deles padecem infelizes. Os ídolos da cultura de massas são os substitutos dos deuses do Olimpo. Nada vale a pena se a alma fica pequena: de nada vale o reconhecimento da obra se ela presta desserviço à autonomia plena de si mesmo (Foucault tinha uma expressão que reproduz o que pretendo dizer: uma vida que exercite a liberdade da vontade ao mesmo tempo em que realiza a obra como plenitude, o cuidado de si). Reconhecidos, todavia distantes do estridente sucesso de celebridades, companheiros que já se foram de nosso cotidiano, a obra de Radegundis e Mário ficam como fonte de exemplo: assim que se deve viver a vida, cuidar de si pela fidelidade a si mesmo é regar pelo exemplo a vida alheia.
A taça de vinho da vida é incomensurável, pois desfrutemo-la seguindo o exemplo de Radegundis e Mário.
Jaldes Reis de Meneses
A súbita notícia de morte, o redemoinho de uma notícia em cima da outra, de dois professores – Radegundis Feitosa e Mário Assad – me deixou com um sentimento incomum de consternação, parecido com a vontade de poesia, que só pode ser expiado pela catarse da escrita. A cerimônia de adeus aos dois companheiros de profissão me fez voltar à mente os temas da vida e da morte num grau parecido com o da morte de meu pai, há dois anos passados.
Não fui amigo íntimo de nenhum dos dois, cruzaram o meu caminho na condição de colegas de profissão com os quais em certas ocasiões compartilhei combates e atividades em comum e de que passei a admirar o evidente valor pessoal. Uma das orações do Padre Vieira sentencia: os discursos de quem não viu, são discursos, os discursos de quem viu são profecias. Com a devida vênia de Vieira, vou dar uma de profeta do passado. Tenho a dizer por testemunho direto de quem viu: foram duas vidas plenas de realização do talento. Eram duas personalidades, talvez uma desconhecida da outra - não sei -, que, ao menos aos meus olhos em retrovisor, agora se completam.
Por manifesto, me abstenho de demorar em dissertar a genialidade musical de Redegundis, como também das contribuições de Mário Assad, trabalhador profícuo, ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, principalmente a Internet, na UFPB e na Paraíba. Artista e cientista, ambos eram figuras dotadas de enorme senso de humor, sustentado em alta voltagem de senso prático. Se couber um truísmo, a gente não repara, mas a vida realmente é bela. Não estamos na presença de generais nem de celebridades, de heróis sacrifiçais nem de profetas, mas de talentos de vida comum, cuja ventura encontra-se na fidelidade ao desejo de realizar a condição de músico e de físico.
Alguns, arguindo uma psicanálise simplificada, tendem a considerar a impossibilidade de realização do desejo um poço permanente de infelicidade, de derrota lúgubre do sujeito. É preciso ir devagar com o andor: para mim, a fidelidade do desejo guarda distância do ato de sublimar o ato sexual em arte e ciência, explicação do senso comum psicanalítico. A fidelidade ao desejo define a vida tanto de Radegundis como de Mário. Fidelidade é diferente de fé religiosa, que pode vir a ser uma inerte contemplação metafísica; em ambos, Radegundis e Mário, ao contrário, a escolha em ser músico ou físico, estava além da simples inserção no mercado de trabalho, eram projetos criativos em execução por toda a existência. Por isso, o senso de humor e o senso prático eram característicos nos dois. Não sei bem de Mário, mas Radegundis carregava o trombone por todo lugar, a qualquer momento de um encontro, sacava do instrumento e punha-se a tocar maravilhosamente: isso é que é fidelidade ao desejo, aquilo que equivocadamente algumas pessoas chamam de obsessão do artista ou do cientista, nada tem a ver com alienação.
Procuro fazer uma distinção entre a admiração à singeleza dos que conseguiram a felicidade através de uma persistente fidelidade ao desejo e a falsa grandiloqüência do culto dos grandes ídolos. Os ídolos são como semideuses, preenchem involuntariamente os nossos recalques, mas não necessariamente são fieis ao próprio desejo, por isso muitos deles padecem infelizes. Os ídolos da cultura de massas são os substitutos dos deuses do Olimpo. Nada vale a pena se a alma fica pequena: de nada vale o reconhecimento da obra se ela presta desserviço à autonomia plena de si mesmo (Foucault tinha uma expressão que reproduz o que pretendo dizer: uma vida que exercite a liberdade da vontade ao mesmo tempo em que realiza a obra como plenitude, o cuidado de si). Reconhecidos, todavia distantes do estridente sucesso de celebridades, companheiros que já se foram de nosso cotidiano, a obra de Radegundis e Mário ficam como fonte de exemplo: assim que se deve viver a vida, cuidar de si pela fidelidade a si mesmo é regar pelo exemplo a vida alheia.
A taça de vinho da vida é incomensurável, pois desfrutemo-la seguindo o exemplo de Radegundis e Mário.
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