Constituinte exclusiva
Artigo também publicado no portal www.wscom.com.br
Jaldes Reis de Meneses
Um dos grandes jornais brasileiros, a Folha de S. Paulo, publicou na edição de domingo (29/08) um inflamado editorial (Perigosa fantasia) com o objetivo de enterrar, já no nascedouro, a proposta de convocação de uma assembleia constituinte exclusiva com pauta determinada, ou seja, modificar os capítulos atinentes às ordens política e tributária. De maneira discreta, a proposta de constituinte exclusiva, aprovada formalmente no Congresso do PT, surgiu de fato no debate político em declarações públicas de Lula e Dilma Rousseff, ainda no ano passado; recentemente, recebeu a adesão inicial de personalidades de peso, como o presidente da OAB, e vários candidatos, desde Marina Silva (PV) e seu vice, Guilherme Leal. José Serra (PSDB) pronunciou-se contrário, mas até um correligionário local, Cássio Cunha Lima, em entrevista à TV Cabo Branco, pronunciou-se favoravelmente.
O subtexto do aludido editorial não poderia ser mais evidente. Outrora “reformista”, defensora ardorosa das reformas neoliberais (entre as quais incluía a reforma política com voto distrital, clausula de barreira, etc.), o núcleo duro e pensante de certa parte da burguesia brasileira, diante da iminente alteração na correlação de forças partidárias (a vitória eleitoral da coligação lulista e a derrota do PSDM/DEM/PPS, em outubro próximo), enfia a viola no saco, preferindo manter tudo como está.
Embora mesclado com argumentos jurisdicionais sobre as dificuldades de convocar uma constituinte, da complicação de fazer um plebiscito convocatório e um referendum final, na verdade a motivação do veto é o realismo político, aliás, expressa com todas as letras do editorial da Folha: “nessas circunstâncias [a hegemonia eleitoral da coligação governista], bastaria um passo temerário para que a ingenuidade da proposta de uma Constituinte exclusiva fosse convertida em perfídia, numa aventura em que o Executivo todo-poderoso se arrogasse a refazer o desenho constitucional do país para submetê-lo a seus desígnios.”
Em domínios seletos, ronda um espectro de medo quando o assunto na ordem do dia consiste na convocação de uma constituinte exclusiva no Brasil. Já havia esse medo desde tempos remotos, a exemplo do episódio do fim do regime militar, quando a proposta de constituinte exclusiva, do PT e da OAB, foi derrotada pelo PMDB de Ulysses Guimarães e os partidos comunistas. Mas deixemos em paz o baú empoeirado da memória brasileira.
O medo atual é ver-se repetir aqui a estratégia confrontacionista adotada pelo bolivarianismo. Com efeito, na Venezuela, na Bolívia e no Equador, países vizinhos os presidentes – respectivamente, Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa –, foram eleitos em conjunturas de crise e com propostas de ruptura da ordem institucional, através da convocação de uma assembleia constituinte exclusiva. Mais do que fazer a reforma, no caso dos países sob a égide do bolivarianismo, tratava-se de refundar o próprio Estado, virando pelo avesso o status quo.
A não ser na condição de perversão do medo, ou seja, como paranóia, nada mais distante do caso brasileiro do que o espectro do bolivarianismo. Conquanto o sistema político e o pacto federativo funcionem mal entre nós, rigorosamente não há à vista crise de legitimidade na ordem instituída. Ao contrário, as eleições vindouras e a satisfação do eleitorado aí estão, sancionando o ordenamento político, econômico e institucional.
Contudo, ao consagrar o lulismo, o resultado eleitoral vindouro apresenta uma importante novidade: o rompimento e ultrapassagem de um dos aspectos centrais do chamado “presidencialismo de coalizão” – o equilíbrio entre as coalizões de governo e oposição, no parlamento ou na sociedade civil, realidade vigente desde a constituição de 1988, principalmente depois da edição do plano real (1995), quando a crise econômica, enfim, estabilizou-se. Encontramo-nos no umbral da passagem de um sistema de equilíbrio, o presidencialismo de coalizão, para outro tipo, uma nova coligação populista, centrada na figura de Lula e nos partidos PT e PMDB.
Teme-se, portanto, que o vencedor vá atrás das batatas (a constituinte exclusiva) e confeccione, por meio da constituinte exclusiva na qual, certamente, teria maioria, a ossatura da ordem política que mais lhe interesse na manutenção do poder, dessa maneira abrindo um confronto de vida e morte com setores que já estão bastante fragilizados, mas de presença ainda influente no meio empresarial, financeiro, jornalístico, partidário e jurídico. Apesar das bravatas, até hoje o comportamento de Lula tem sido bastante cauteloso no que tange à divisão aberta e ao confronto político, bastando lembrar o recente desinteresse demonstrado em tocar para frente a eventualidade de terceiro mandato. Duvido que ele banque a constituinte exclusiva e enfrente os setores escondidos por trás da letra dos editoriais dos jornais paulistas. Não creio que com Dilma seja diferente.
A não ser que haja um clamor geral, ademais difícil de acontecer, pois o povo (e mesmo o eleitor de classe média) cultiva o hábito da incredulidade em temas estritamente políticos, a proposta de constituinte exclusiva deve permanecer virtual. Por outro lado, sempre é conveniente, principalmente ao PT, que mantém uma ambígua política em pinças, de um olho no ferro e outro na ferradura, estimular o debate, como a encenar alternativas bifrontes, assombrar que dispõe de variados caminhos estratégicos e táticos, até mesmo produzir uma improvável viragem refundacionista no sistema político brasileiro.
Jaldes Reis de Meneses
Um dos grandes jornais brasileiros, a Folha de S. Paulo, publicou na edição de domingo (29/08) um inflamado editorial (Perigosa fantasia) com o objetivo de enterrar, já no nascedouro, a proposta de convocação de uma assembleia constituinte exclusiva com pauta determinada, ou seja, modificar os capítulos atinentes às ordens política e tributária. De maneira discreta, a proposta de constituinte exclusiva, aprovada formalmente no Congresso do PT, surgiu de fato no debate político em declarações públicas de Lula e Dilma Rousseff, ainda no ano passado; recentemente, recebeu a adesão inicial de personalidades de peso, como o presidente da OAB, e vários candidatos, desde Marina Silva (PV) e seu vice, Guilherme Leal. José Serra (PSDB) pronunciou-se contrário, mas até um correligionário local, Cássio Cunha Lima, em entrevista à TV Cabo Branco, pronunciou-se favoravelmente.
O subtexto do aludido editorial não poderia ser mais evidente. Outrora “reformista”, defensora ardorosa das reformas neoliberais (entre as quais incluía a reforma política com voto distrital, clausula de barreira, etc.), o núcleo duro e pensante de certa parte da burguesia brasileira, diante da iminente alteração na correlação de forças partidárias (a vitória eleitoral da coligação lulista e a derrota do PSDM/DEM/PPS, em outubro próximo), enfia a viola no saco, preferindo manter tudo como está.
Embora mesclado com argumentos jurisdicionais sobre as dificuldades de convocar uma constituinte, da complicação de fazer um plebiscito convocatório e um referendum final, na verdade a motivação do veto é o realismo político, aliás, expressa com todas as letras do editorial da Folha: “nessas circunstâncias [a hegemonia eleitoral da coligação governista], bastaria um passo temerário para que a ingenuidade da proposta de uma Constituinte exclusiva fosse convertida em perfídia, numa aventura em que o Executivo todo-poderoso se arrogasse a refazer o desenho constitucional do país para submetê-lo a seus desígnios.”
Em domínios seletos, ronda um espectro de medo quando o assunto na ordem do dia consiste na convocação de uma constituinte exclusiva no Brasil. Já havia esse medo desde tempos remotos, a exemplo do episódio do fim do regime militar, quando a proposta de constituinte exclusiva, do PT e da OAB, foi derrotada pelo PMDB de Ulysses Guimarães e os partidos comunistas. Mas deixemos em paz o baú empoeirado da memória brasileira.
O medo atual é ver-se repetir aqui a estratégia confrontacionista adotada pelo bolivarianismo. Com efeito, na Venezuela, na Bolívia e no Equador, países vizinhos os presidentes – respectivamente, Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa –, foram eleitos em conjunturas de crise e com propostas de ruptura da ordem institucional, através da convocação de uma assembleia constituinte exclusiva. Mais do que fazer a reforma, no caso dos países sob a égide do bolivarianismo, tratava-se de refundar o próprio Estado, virando pelo avesso o status quo.
A não ser na condição de perversão do medo, ou seja, como paranóia, nada mais distante do caso brasileiro do que o espectro do bolivarianismo. Conquanto o sistema político e o pacto federativo funcionem mal entre nós, rigorosamente não há à vista crise de legitimidade na ordem instituída. Ao contrário, as eleições vindouras e a satisfação do eleitorado aí estão, sancionando o ordenamento político, econômico e institucional.
Contudo, ao consagrar o lulismo, o resultado eleitoral vindouro apresenta uma importante novidade: o rompimento e ultrapassagem de um dos aspectos centrais do chamado “presidencialismo de coalizão” – o equilíbrio entre as coalizões de governo e oposição, no parlamento ou na sociedade civil, realidade vigente desde a constituição de 1988, principalmente depois da edição do plano real (1995), quando a crise econômica, enfim, estabilizou-se. Encontramo-nos no umbral da passagem de um sistema de equilíbrio, o presidencialismo de coalizão, para outro tipo, uma nova coligação populista, centrada na figura de Lula e nos partidos PT e PMDB.
Teme-se, portanto, que o vencedor vá atrás das batatas (a constituinte exclusiva) e confeccione, por meio da constituinte exclusiva na qual, certamente, teria maioria, a ossatura da ordem política que mais lhe interesse na manutenção do poder, dessa maneira abrindo um confronto de vida e morte com setores que já estão bastante fragilizados, mas de presença ainda influente no meio empresarial, financeiro, jornalístico, partidário e jurídico. Apesar das bravatas, até hoje o comportamento de Lula tem sido bastante cauteloso no que tange à divisão aberta e ao confronto político, bastando lembrar o recente desinteresse demonstrado em tocar para frente a eventualidade de terceiro mandato. Duvido que ele banque a constituinte exclusiva e enfrente os setores escondidos por trás da letra dos editoriais dos jornais paulistas. Não creio que com Dilma seja diferente.
A não ser que haja um clamor geral, ademais difícil de acontecer, pois o povo (e mesmo o eleitor de classe média) cultiva o hábito da incredulidade em temas estritamente políticos, a proposta de constituinte exclusiva deve permanecer virtual. Por outro lado, sempre é conveniente, principalmente ao PT, que mantém uma ambígua política em pinças, de um olho no ferro e outro na ferradura, estimular o debate, como a encenar alternativas bifrontes, assombrar que dispõe de variados caminhos estratégicos e táticos, até mesmo produzir uma improvável viragem refundacionista no sistema político brasileiro.
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