Florestan Fernandes, clássico da interpretação do Brasil
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Jaldes Reis de Meneses
Há quinze anos, em um cinzento mês de agosto acobertado de garoa paulista e na época do apogeu do primeiro governo Fernando Henrique, antigo assistente de ensino do velho professor, morreu Florestan Fernandes, um dos principais intelectuais brasileiros do século XX. As homenagens foram escassas, abaixo do merecimento do grande e fecundo autor.
Professor universitário e militante de esquerda, não se pode dizer que Florestan Fernandes seja um autor esquecido. Unanimemente lembrado na galeria de uma geração de pensadores do tope de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido e Celso Furtado - autores que lograram formular interpretações originais do Brasil -, Fernandes legou ao pensamento social brasileiro uma vasta e densa obra de mais de trinta títulos, da qual certamente o mais importante é a obra-prima Revolução Burguesa no Brasil, escrita entre 1965 e 1974, no Brasil e no Canadá.
Mas não só isso. O conteúdo explosivo e radical da obra vinda a lume em 1974, quando começávamos a viver o ocaso da ditadura, significou também uma viragem no pensamento de Fernandes. A partir daquele momento, conquanto não sem crispações, o militante radical abandona a pele de influente sociólogo funcionalista - cultor de um “ecletismo bem temperado”, interessante expressão de seu ex-aluno Gabriel Cohn –, mestre de vários discípulos intelectuais conhecidos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, José de Souza Martins, Maria Sylvia de Carvalho Franco), e parte para o combate de peito aberto à ditadura com as armas da teoria marxista. Contudo, não o marxismo dos salões - que vive da citação do autor francês em moda -, mas um marxismo hard, revolucionário, fundamentado, principalmente, em Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci, entre os principais.
Embora Fernandes não seja um autor esquecido não se pode afirmar que seja um autor lido. Caso continuasse, na segunda fase de sua obra, o competente cultor do ecletismo bem temperado - a engenhosa fusão feita pela sociologia paulista, sob o comando do próprio Florestan, de Marx, Weber e Durkheim -, certamente seria um autor mais palatável pelo establishment acadêmico da sociologia brasileira.
À medida que foi radicalizando seu marxismo (e A Revolução Burguesa no Brasil simboliza a definitiva radicalização teórica e política de Fernandes), desbastando-se das impostações da sociologia de salão, criador e criatura foram progressivamente abrindo um processo de litígio. Enquanto a criatura (a sociologia) se profissionaliza, busca uma vaga bem comportada na divisão sócio-técnica do trabalho desatada pelo amadurecimento do capitalismo brasileiro, o criador (Florestan) se radicaliza progressivamente, até morrer na posição de desconfiança mútua dentro do próprio PT, combatendo o processo de social-democratização do partido ao qual doou o melhor de suas energias intelectuais na última fase da vida.
A opção teórica e existencial de Fernandes pelo marxismo processou-se um por via bastante pessoal e original. O peculiar marxismo de Fernandes possui uma dicção própria surpreendente: ele é eivado, na exposição, da presença epidérmica de expressões hauridas da sociologia estrutural-funcionalista norte americana. Do meu ponto de vista, porém, conquanto a exposição esteja permeada da nomenclatura haurida do estrutural-funcionalismo, a investigação é feita sob os auspícios de um método dialético de análise. Tudo isso significa que não foi fácil para Fernandes realizar a travessia fundamental entre os dois momentos de sua obra: entre o ecletismo bem temperado (Marx, Weber e Durkheim) e o marxismo.
Parece-me que havia em Florestan uma disjuntiva: no plano estritamente político Fernandes sempre esteve situado à esquerda e professou o marxismo, mas, no plano conceitual, a passagem para o marxismo realizou-se em um longo prazo e com crispações de pensamento, revelado pelo resíduo funcionalista no plano da exposição. Em depoimento datado de 1980, colhido por José Chasin em visita do professor à Paraíba, diz o próprio Florestan “(...) durante algum tempo, eu corri o risco de palmilhar o caminho (...) de pulverizar as ciências e de procurar uma falsa autonomia das ciências. Eu teria entrado por um mau caminho. O que me salvou foi a impregnação marxista da minha relação prática com os problemas da sociedade brasileira (...)”
Com estas premissas metodológicas e teóricas, ao lado de autores do naipe de um Celso Furtado, Caio Prado Jr., Rui Mauro Marini, André Grunder Frank, Francisco de Oliveira, entre outros, Florestan foi fundo no conceito de dependência, e a partir daí formulou as bases de sua démarche sobre o processo de revolução burguesa no Brasil. Não é o caso de aprofundar o conceito de dependência haurido por Florestan neste espaço de internet, mas de persuadir o leitor da riqueza teórica e da atualidade da obra do grande professor para entender o Brasil. Florestan vive. Saudades de sua presença no cenário intelectual brasileiro.
Jaldes Reis de Meneses
Há quinze anos, em um cinzento mês de agosto acobertado de garoa paulista e na época do apogeu do primeiro governo Fernando Henrique, antigo assistente de ensino do velho professor, morreu Florestan Fernandes, um dos principais intelectuais brasileiros do século XX. As homenagens foram escassas, abaixo do merecimento do grande e fecundo autor.
Professor universitário e militante de esquerda, não se pode dizer que Florestan Fernandes seja um autor esquecido. Unanimemente lembrado na galeria de uma geração de pensadores do tope de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido e Celso Furtado - autores que lograram formular interpretações originais do Brasil -, Fernandes legou ao pensamento social brasileiro uma vasta e densa obra de mais de trinta títulos, da qual certamente o mais importante é a obra-prima Revolução Burguesa no Brasil, escrita entre 1965 e 1974, no Brasil e no Canadá.
Mas não só isso. O conteúdo explosivo e radical da obra vinda a lume em 1974, quando começávamos a viver o ocaso da ditadura, significou também uma viragem no pensamento de Fernandes. A partir daquele momento, conquanto não sem crispações, o militante radical abandona a pele de influente sociólogo funcionalista - cultor de um “ecletismo bem temperado”, interessante expressão de seu ex-aluno Gabriel Cohn –, mestre de vários discípulos intelectuais conhecidos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, José de Souza Martins, Maria Sylvia de Carvalho Franco), e parte para o combate de peito aberto à ditadura com as armas da teoria marxista. Contudo, não o marxismo dos salões - que vive da citação do autor francês em moda -, mas um marxismo hard, revolucionário, fundamentado, principalmente, em Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci, entre os principais.
Embora Fernandes não seja um autor esquecido não se pode afirmar que seja um autor lido. Caso continuasse, na segunda fase de sua obra, o competente cultor do ecletismo bem temperado - a engenhosa fusão feita pela sociologia paulista, sob o comando do próprio Florestan, de Marx, Weber e Durkheim -, certamente seria um autor mais palatável pelo establishment acadêmico da sociologia brasileira.
À medida que foi radicalizando seu marxismo (e A Revolução Burguesa no Brasil simboliza a definitiva radicalização teórica e política de Fernandes), desbastando-se das impostações da sociologia de salão, criador e criatura foram progressivamente abrindo um processo de litígio. Enquanto a criatura (a sociologia) se profissionaliza, busca uma vaga bem comportada na divisão sócio-técnica do trabalho desatada pelo amadurecimento do capitalismo brasileiro, o criador (Florestan) se radicaliza progressivamente, até morrer na posição de desconfiança mútua dentro do próprio PT, combatendo o processo de social-democratização do partido ao qual doou o melhor de suas energias intelectuais na última fase da vida.
A opção teórica e existencial de Fernandes pelo marxismo processou-se um por via bastante pessoal e original. O peculiar marxismo de Fernandes possui uma dicção própria surpreendente: ele é eivado, na exposição, da presença epidérmica de expressões hauridas da sociologia estrutural-funcionalista norte americana. Do meu ponto de vista, porém, conquanto a exposição esteja permeada da nomenclatura haurida do estrutural-funcionalismo, a investigação é feita sob os auspícios de um método dialético de análise. Tudo isso significa que não foi fácil para Fernandes realizar a travessia fundamental entre os dois momentos de sua obra: entre o ecletismo bem temperado (Marx, Weber e Durkheim) e o marxismo.
Parece-me que havia em Florestan uma disjuntiva: no plano estritamente político Fernandes sempre esteve situado à esquerda e professou o marxismo, mas, no plano conceitual, a passagem para o marxismo realizou-se em um longo prazo e com crispações de pensamento, revelado pelo resíduo funcionalista no plano da exposição. Em depoimento datado de 1980, colhido por José Chasin em visita do professor à Paraíba, diz o próprio Florestan “(...) durante algum tempo, eu corri o risco de palmilhar o caminho (...) de pulverizar as ciências e de procurar uma falsa autonomia das ciências. Eu teria entrado por um mau caminho. O que me salvou foi a impregnação marxista da minha relação prática com os problemas da sociedade brasileira (...)”
Com estas premissas metodológicas e teóricas, ao lado de autores do naipe de um Celso Furtado, Caio Prado Jr., Rui Mauro Marini, André Grunder Frank, Francisco de Oliveira, entre outros, Florestan foi fundo no conceito de dependência, e a partir daí formulou as bases de sua démarche sobre o processo de revolução burguesa no Brasil. Não é o caso de aprofundar o conceito de dependência haurido por Florestan neste espaço de internet, mas de persuadir o leitor da riqueza teórica e da atualidade da obra do grande professor para entender o Brasil. Florestan vive. Saudades de sua presença no cenário intelectual brasileiro.
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