O Irã e a democracia

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Jaldes Reis de Meneses

As notícias que me chegam hoje (03/08) através dos portais dão conta de que o governo iraniano reagiu negativamente à proposta feita pelo presidente Lula, em um discurso em Curitiba, de o Brasil conceder asilo a Sakineh Mohammadi Ashtianim. Trata-se do rumoroso caso, de repercussão internacional, de uma mulher julgada em processo jurídico legal na província de Azerbaijão Ocidental (na verdade, condenada pela sharia islâmica, que opera os cordéis da pseudo legalidade processual) por cometer “crime” de adultério, conseqüentemente condenada a limine à pena de morte por apedrejamento, talvez substituída, na ideia de recurso de clemência a Teerã, pela alternativa (menos dolorosa?) do enforcamento.

Ainda que Lula não tenha feito a proposta exibindo os melhores argumentos disponíveis na doutrina dos direitos humanos – ele falou em “carinho e amizade” por Ahmadinejad e, pior, se propôs a intervir para livrar o amigo do “incômodo”, o fato é que a proposta foi feita por um inesperado aliado recente, mas de confiança. É complicado deixar amigos a ver navios. O amigo pode ficar chateadado (tenho para mim que o tom coloquial de Lula não é corrigido pelo Itamaraty, ou só o é a posteriori...). Por seu turno, reagindo a uma proposta simples e concreta – o asilo –, o regime iraniano desconversa e afirma que Lula tem “uma personalidade emotiva” e provavelmente “não tem informações suficientes sobre o caso”.

Estive entre os que defenderam as ações da política internacional brasileira na defesa de um acordo nuclear com o Irã, afinal gorado sob pressão dos Estados Unidos. Contudo, naquele momento, mais além de ficar somente na análise da letra fria do acordo e nas movimentações das grandes potências, chamei a atenção, em artigos publicados no wscom, para algumas particularidades da formação histórica do Irã: uma sociedade civil mais densa do que a dos países árabes vizinhos, que realizou uma revolução teocrática, hoje repleta de impasses e contradições, expressos na luta de dois blocos, a chamada “linha dura” (Ahmadinejad e o Aiatolá Khamenei como as principais lideranças) e o “movimento pela democracia” (juventude, mulheres e uma parcela dissidente do clero xiita).

Há uma razão de fundo estrutural para a existência de um forte “movimento pela democracia” no Irã e que repressão alguma pode liquidar: assim como no caso das lutas anti-ditatoriais encenadas no Brasil, Espanha e Portugal, por exemplo, nos anos setenta do século passado, ali também houve um movimento de modernização das estruturas econômicas, principalmente movimentos de urbanização e educação massiva. As massas foram arrancadas da convivência comunitária tradicional e se viram à frente do contrato de trabalho assalariado e individual. Os regimes ditatoriais que passam por processo de modernização, de alguma maneira, imprevidentes, cavam a própria sepultura: são regimes contraditoriamente demiurgos, criadores, na figura emergente de uma sociedade civil de feição individualista e capitalista, do coveiro que vai sepultá-los mais adiante. Foi assim com Figueiredo (Brasil), Franco (Espanha) e Marcelo Caetano (Portugal).

Não se pode dizer, apesar de tudo, que o desenlace feliz acontecerá no Irã, onde necessariamente as lutas serão (já estão sendo) mais radicais. Brasil, Espanha e Portugal, afinal, eram países ocidentais e cristãos, no qual o processo de modernidade logrou afastar o Estado da religião. Invoquei os exemplos de Espanha e Portugal de propósito: embora os regimes de Franco e de Salazar fossem radicalmente católicos – o de Franco, quase à beira do integrismo –, nem de longe, se aproximam do grau de simbiose entre Estado e religião encontrados no Irã. Por isso, mais que nada, todas as lutas políticas internas, no Irã, se transformam em lutas culturais, ou, ao inverso, as lutas culturais de imediato se transformam em luta política. Toda a cultura é politizada porque, neste caso, a democracia, até mais que a simples política institucional, muda a própria cultura.

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