A Transição Suave

Redigi este artigo ainda o ano passado, mas ainda não havia postado no blog. A data de hoje, 31 de janeiro, é oportuna para publicá-lo, antes que a conjuntura o desatualize (o novo governo Dilma completa o primeiro mês). Boa leitura.

Jaldes Reis de Meneses

Há duas grandes novidades históricas na transição de governo entre Lula e Dilma Rousseff, autênticos pontos de mutação em nosso padrão republicano, que tem passado em brancas nuvens. Quando o extraordinário vira cotidiano quase ninguém percebe, invisível se torna até mesmo aos olhos dos mais atilados analistas políticos.

Quais são as novidades? Em primeiro lugar, caso recordemos a série história das sucessões presidenciais a partir da emergência do Brasil moderno (década de 1920), todas as eleições foram marcados por crises políticas agudas, nas quais eram incertos inclusive o respeito ao resultado das urnas. A trama golpista compunha a cultura política brasileira, até o grave desfecho da crise do governo populista de João Goulart elevar o golpe à condição de ato soberano de instituição de poder constituinte (parafraseando o jargão do jurista nazista alemão Carl Schmitt).

O padrão de crise e instabilidade política seguiu o mesmo minueto nas sucessões militares, cujos presidentes eram escolhidos no circuito fechado da cúpula das forças armadas e o colégio eleitoral, mas as disputas nos bastidores entre o “grupo da Sorbonne” (Golbery, Geisel, Castelo) e a chamada “linha dura” (Lyra Tavares, Silvio Frota, Médici) eram fratricidas.

Sobreveio o fim da ditadura, chegaram a nova república (1985), a democracia e o Estado de Direito, contudo, o padrão de crise se manteve, acrescentado de amargo condimento: nos anos oitenta, quebrou o Estado desenvolvimentista, a economia política da substituição das importações estancou, ou seja, deixou de haver a âncora econômica que permitia ao país crescer, forjando um acordo parcial entre os litigantes, até a sucessão subseqüente.

Ainda mais, pode-se afirmar que os duros anos oitenta, de formação do PT e ascenso das lutas sociais, também foi marcado – espécie de face oculta da quebra do Estado desenvolvimentista –, nos termos de Florestan Fernandes, pelo término do longo processo de revolução burguesa. Resultado: havia uma desorientação geral as elites, sem saber direito o que fazer. Esta foi a cara do governo Sarney e o tom das eleições de 1989, entre Collor e Lula. Venceu o bonarpartismo collorido, aventura liquidada pelo Impeachment, última manifestação de massas do período da crise de hegemonia burguesa.

O Plano Real (governo Itamar Franco, 1994) sem dúvida começou a alterar o padrão (a primeira eleição de FHC como emblema), mas nem tanto. Na verdade, os processos de eleição presidencial entre 1989 e 2002, tiveram quase um único motivo condutor: firmar entendimentos no sentido de entabular a coligação antilulista, ou seja, as forças do poder econômico se organizavam de maneira defensiva, contra, e não a favor de algum programa. Dessa maneira, a reeleição de FHC em 1998 deu-se novamente em cenário de crise internacional e do Plano Real. FCH angariou votos pregando a incapacidade de Lula gerir a crise. Triste ironia: logo após tomar posse, teve que demitir o então presidente do Banco Central, Gustavo de Franco (o homem da política da paridade real-dólar, que dizia que cambio era igual banana), e valorizar a moeda.

Finalmente, chegamos a 2002, primeira eleição de Lula. A desconfiança era imensa. Novamente, houve um cenário de crise, a inflação subiu, as contas do Estado se desequilibraram, as reversas caíram. Regina Duarte transformou-se de namoradinha do Brasil em espantalho do medo. Enfim, a reeleição de Lula em 2006 aconteceu logo em seguida à crise do mensalão, que derrubou os mais importantes quadros do PT.

Desculpem a longa seqüência, mas ela serve para demonstrar que a atual passagem da faixa presidencial – a transição suave –, em vez de regra é exceção. O confronto entre Dilma e Serra, ainda fresco na memória – especialmente no segundo turno –, teve duras escaramuças, mas nada sequer próximo às crises de nossas sucessões passadas. Teria o padrão se alterado ou houve apenas um interregno?

Last but not least, a segunda novidade, mais percebida, mas ainda nem tanto, é que com a posse do novo governo Dilma, o PT e aliados governarão o Brasil, no mínimo, por 12 anos. Descontados os regimes impostos do Estado Novo (1937-1945) e da Ditadura Militar, em regime democrático, nenhum partido governou o Brasil por tanto tempo, desde pelo menos a data-marco de 1930.

Certamente, há pedras no caminho do novo governo Dilma, desde os problemas da crise internacional (por enquanto, face aos efeitos da crise, predomina um deslocamento entre os países emergentes e os desenvolvidos) até os gastos públicos, alguns típicos de um ciclo eleitoral. Ainda nada de desestabilizador no horizonte, que permanece de autoconfiança e desenvolvimento, mas problemas rotineiros de conjuntura econômica.

Porém, falta a Dilma uma qualidade que ela pode adquirir com o tempo de mandato, mas ainda não possui, longe disso. FHC começou com excesso dessa qualidade, mas foi perdendo enquanto governava; Lula, ao contrário, começou desprovido dela e foi-se robustecendo no exercício da arte de governar. É o que chamo de fiador de última instância do Estado, um poder informal de direção política, necessariamente personalístico, no qual os setores sociais relevantes recorrem para arbitrar e dirimir conflitos. Nas crises, o exercício desse poder é determinante. Por enquanto, Lula continua com este poder de fiador de última instância nas mãos. Resta saber se o poder informal migrará de retorno ao Palácio do Planalto.

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