Revoluções de ira, perfume de jasmim
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Jaldes Reis de Meneses
Os países da confluência do mundo árabe-africano vivem um momento revolucionário. Goste-se dele ou não, a melhor síntese explicativa dos processos revolucionários foi produzida por Lênin nas cartas políticas redigidas em 1917. Verdadeiros monumentos de estratégia, merecido recordá-la a guisa de analisar as manifestações de rua do Egito, Tunísia, Argélia, Jordânia e Iêmen: para acontecer uma revolução é preciso que os de baixo não aceitem mais a dominação e também que os de cima não consigam governar como antes, ou seja, abre-se uma fenda no poder cujo desfecho nunca se sabe de antemão.
Devido o grau indeterminação, as revoluções são desafios às teorias jurisdicionais da política. A antiga ordem cede ao novo e à indeterminação. Em vez do Estado em qualquer de suas formas jurídicas, seja o democrático de direito ou autocrático (como no mundo árabe), abre-se uma fenda de democracia direta, de criação de direito. Não seria exagerado afirmar que as revoluções são um momento ontológico, plasmado na simbologia épica que os protagonistas criam a si mesmos. Explico-me. Acontecimento fortuito, um anônimo jovem endividado ateou fogo às vestes em frente ao Palácio, quem diria de antemão gerar a chamada Revolução de Jasmim na Tunísia, abrindo uma sequência incontrolável que influenciou o Egito e outros países governados por ditaduras autocráticas.
Dessa maneira, quem está morrendo no Egito de Hosni Mubarak e na Tunísia de Ben Ali é uma ideologia e uma forma de fazer política e até revoluções, advindos do período da guerra fria: a escola do nacionalismo árabe, principalmente militar, que prometeu desenvolver aqueles países a partir de modernizações forçadas a partir de cima.
Ou seja, quem morre com a agonia do coronel Hosni Mubarak é o espectro do velho general Gamal Adbel Nasser, de um movimento que começou como dos “oficiais livres”; derrubou a monarquia (1952); enfrentou a Inglaterra e a França pelo controle do Canal de Suez, aliás, com o apoio dos Estados Unidos e da União Soviética (1956); construiu sem créditos financeiros externos a barragem de Assuã, servindo o Egito de energia elétrica e canais irrigados. Muitos feitos, que fizeram de Nasser uma figura admirada no terceiro mundo e líder do movimento dos não alinhados.
Depois dos êxitos, o projeto dos generais do Egito em dirigir o mundo árabe sofreu duas derrotas militares de Israel, a Guerra dos Seis de Dias (1967) e Iom Kippur (1973), se esfacelando. Ciente do fracasso da proposta de unificar os árabes, o sucessor de Nasser, Anwar Al Sadat, intenta uma manobra radical: de grande inimigo, Israel e os Estados Unidos se transformaram em principais aliados. A viragem rendeu a Sadat um prêmio Nobel da Paz (1979) e um assassinato por fundamentalista islâmico, travestido em oficial do exército, em plena revista de tropas numa parada militar (1981).
O governo de Hosni Mubarak é o derradeiro herdeiro da tumultuada viagem do nacionalismo árabe, com o agravante que ele quis perverter o império dos generais esclarecidos em oligarquia familiar.
A cortina do teatro se fechou ao poder das forças armadas no Egito, ou ainda é possível um transformismo, a continuidade sem Mubarak? A irmandade muçulmana vai, enfim, chegar ao poder e criar um regime teocrático sunita? El Baradei será simplesmente um novo Kerenski? Haverá a possibilidade generosa do movimento da sociedade civil criar uma democracia no Egito?
Difícil por enquanto responder peremptoriamente quaisquer uma dessas perguntas. Todavia, pode-se afirmar que há dois tipos de revoluções: o tipo mais comum no século foi o assalto ao Estado de um grupo que toma a capital do país, ou o resultado final de uma demorada luta e em grande parte rural. Essa foi a revolução dos chamados “oficiais livres”.
Outro tipo de revolução, mais raro, é aquela em que de repente a estrutura da ordem e a autoridade política se dissipam, abrindo espaço a uma indeterminação na qual as massas viram protagonistas. É quando a boca dos canhões recebe uma flor de jasmim. Esses momentos, representativos dos de baixo que não aceitam mais a dominação, não são apenas raros, mas breves como um facho de luz na noite escura. Mas possuem o condão, muitas vezes, de instituir uma ordem democrática e laica, profana, nos quais os dias de ira (título da manifestação no Cairo, quinta-feira passada, 27/0) exalam do perfume de uma flor.
Jaldes Reis de Meneses
Os países da confluência do mundo árabe-africano vivem um momento revolucionário. Goste-se dele ou não, a melhor síntese explicativa dos processos revolucionários foi produzida por Lênin nas cartas políticas redigidas em 1917. Verdadeiros monumentos de estratégia, merecido recordá-la a guisa de analisar as manifestações de rua do Egito, Tunísia, Argélia, Jordânia e Iêmen: para acontecer uma revolução é preciso que os de baixo não aceitem mais a dominação e também que os de cima não consigam governar como antes, ou seja, abre-se uma fenda no poder cujo desfecho nunca se sabe de antemão.
Devido o grau indeterminação, as revoluções são desafios às teorias jurisdicionais da política. A antiga ordem cede ao novo e à indeterminação. Em vez do Estado em qualquer de suas formas jurídicas, seja o democrático de direito ou autocrático (como no mundo árabe), abre-se uma fenda de democracia direta, de criação de direito. Não seria exagerado afirmar que as revoluções são um momento ontológico, plasmado na simbologia épica que os protagonistas criam a si mesmos. Explico-me. Acontecimento fortuito, um anônimo jovem endividado ateou fogo às vestes em frente ao Palácio, quem diria de antemão gerar a chamada Revolução de Jasmim na Tunísia, abrindo uma sequência incontrolável que influenciou o Egito e outros países governados por ditaduras autocráticas.
Dessa maneira, quem está morrendo no Egito de Hosni Mubarak e na Tunísia de Ben Ali é uma ideologia e uma forma de fazer política e até revoluções, advindos do período da guerra fria: a escola do nacionalismo árabe, principalmente militar, que prometeu desenvolver aqueles países a partir de modernizações forçadas a partir de cima.
Ou seja, quem morre com a agonia do coronel Hosni Mubarak é o espectro do velho general Gamal Adbel Nasser, de um movimento que começou como dos “oficiais livres”; derrubou a monarquia (1952); enfrentou a Inglaterra e a França pelo controle do Canal de Suez, aliás, com o apoio dos Estados Unidos e da União Soviética (1956); construiu sem créditos financeiros externos a barragem de Assuã, servindo o Egito de energia elétrica e canais irrigados. Muitos feitos, que fizeram de Nasser uma figura admirada no terceiro mundo e líder do movimento dos não alinhados.
Depois dos êxitos, o projeto dos generais do Egito em dirigir o mundo árabe sofreu duas derrotas militares de Israel, a Guerra dos Seis de Dias (1967) e Iom Kippur (1973), se esfacelando. Ciente do fracasso da proposta de unificar os árabes, o sucessor de Nasser, Anwar Al Sadat, intenta uma manobra radical: de grande inimigo, Israel e os Estados Unidos se transformaram em principais aliados. A viragem rendeu a Sadat um prêmio Nobel da Paz (1979) e um assassinato por fundamentalista islâmico, travestido em oficial do exército, em plena revista de tropas numa parada militar (1981).
O governo de Hosni Mubarak é o derradeiro herdeiro da tumultuada viagem do nacionalismo árabe, com o agravante que ele quis perverter o império dos generais esclarecidos em oligarquia familiar.
A cortina do teatro se fechou ao poder das forças armadas no Egito, ou ainda é possível um transformismo, a continuidade sem Mubarak? A irmandade muçulmana vai, enfim, chegar ao poder e criar um regime teocrático sunita? El Baradei será simplesmente um novo Kerenski? Haverá a possibilidade generosa do movimento da sociedade civil criar uma democracia no Egito?
Difícil por enquanto responder peremptoriamente quaisquer uma dessas perguntas. Todavia, pode-se afirmar que há dois tipos de revoluções: o tipo mais comum no século foi o assalto ao Estado de um grupo que toma a capital do país, ou o resultado final de uma demorada luta e em grande parte rural. Essa foi a revolução dos chamados “oficiais livres”.
Outro tipo de revolução, mais raro, é aquela em que de repente a estrutura da ordem e a autoridade política se dissipam, abrindo espaço a uma indeterminação na qual as massas viram protagonistas. É quando a boca dos canhões recebe uma flor de jasmim. Esses momentos, representativos dos de baixo que não aceitam mais a dominação, não são apenas raros, mas breves como um facho de luz na noite escura. Mas possuem o condão, muitas vezes, de instituir uma ordem democrática e laica, profana, nos quais os dias de ira (título da manifestação no Cairo, quinta-feira passada, 27/0) exalam do perfume de uma flor.
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