Keynes e a crise

Jaldes Reis de Meneses

A semana (08\08)começou com uma segunda-feira de pânico nos mercados internacionais das bolsas de valores, que deve perdurar nos próximos dias, enquanto na Inglaterra massas enfurecidas ateavam fogo em automóveis e prédios com uma fúria e ódio haitianos.

A revolução está distante de bater à porta, mas perigosas revoltas espasmódicas se avolumam nas periferias pobres das grandes metrópolis, mimetizando os levantes luditas (operários que destruíam as máquinas no período da revolução indústria) do século XIX, ou mesmo os saques pré-capitalistas da seca no sertão nordestino. Configura-se uma nova paisagem urbana nos países da Europa: no passado recente já tivemos explosões em Los Angeles e Paris, mas agora parece se criar uma onda.

Onde estão as instituições do Estado de Bem-Estar, na Europa e mesmo nos Estados Unidos, que já não fornecem o colchão indispensável ao controle da questão social? Quando mencionamos crise econômica e welfare state, logo a memória puxa o nome mágico e o emblema de Lord John Maynard Keynes, o genial economista britânico que sistematizou as políticas anticíclicas de contenção da crise, com base em políticas de gasto público, bem como ajudou na formulação de políticas sociais inclusivas da antiga classe operária fabril, soldando o que depois foi chamado nas ciências sociais de “acordo fordista”. Idílicos os tempos do projeto do capitalismo democrático (Keynes morrera em 1946, mas deixara o emblema): cessados os conflitos da segunda guerra mundial, a economia voltou a crescer em ritmo voador, auxiliado, no plano ideológico, pela formidável expansão da doutrina keynesiana em todos os recantos (inclusive no Brasil). De repente, expressões como multiplicador, demanda pública e aproveitamento da capacidade ociosa das empresas passaram a compor o discurso dos estadistas.

Os tempos de Keynes defasaram. Nada mais será como antes. O projeto keynesiano requisitava o estabelecimento de uma política macroeconômica inibidora do livre fluxo de capitais. O keynesianismo, do ponto de vista geopolítico, é fronteiriço: as finanças devem ser reguladas e controladas pelo Estado. O neoliberalismo desmoronou tais fronteiras. Por outro lado, mais além da égide das finanças em detrimento da produção, há um fato social mais grave, em geral despercebido: no passado, o chamado acordo keynesiano-fordista sustentava em bases nacionais.

Melhor explicando: no continente europeu, a classe trabalhadora subscritora do acordo (tácito ou escrito) fordista era nacional – francês, alemão, italiano, etc. Por outro lado, nos dias de hoje, as populações revoltadas das periferias, o subproletariado do porão da economia informal, é internacional. São árabes, latino-americanos, turcos, etc. Não se integram à sociedade nacional. Compõem guetos, falam outra língua. À maneira dos judeus no passado, viraram alvo dos recalques dos trabalhadores e da classe média nativa. O manual do acordo keynesiano-fordista não previa essas situações.

É preciso investigar melhor o que chamo de “lado B” da economia política do keynesianismo e do fordismo. Em primeiro lugar, o tão decantado “acordo” entre o trabalho e o capital, base das instituições políticas liberais vigentes à época, foi perpetrado numa relação de troca na qual os trabalhadores passaram a ter acesso aos objetos de consumo (principalmente o automóvel, base de tudo), mas em contrapartida tiveram de ceder ao aumento da intensidade no ritmo de trabalho na produção. Em termos de Marx: elevou-se a alienação do trabalho. Depois – e até mais importante para entender a crise atual –, as políticas anticíclicas do keynesianismo jamais conseguiram instaurar um ciclo econômico novo, embora sem dúvida prolonguem a vida do ciclo velho. Tive este insigth em meu trabalho de doutorado, defendido no ano de 2002, na UFRJ, obtendo nota máxima numa banca examinadora com os professores Francisco de Oliveira, Aloisio Teixeira (Reitor da UFRJ), José Paulo Netto e Giovanni Semeraro, sob a orientação de Carlos Nelson Coutinho.

Mas como, podem perguntar os surpresos com a heresia, o keynesianismo não logra instaurar o ciclo novo? O mundo cresceu com essas políticas? No caso da Europa, é simples: o que instaurou o ciclo novo e o acordo político do keynesianismo-fordismo foi os 40 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial. A política (de guerra) segue à frente da economia. Triste contestação: foram necessários milhões de mortos para relançar a economia capitalista. A partir deste marco, as mágicas macroeconômicas do keynesianismo se puseram a funcionar.

A crise atual parece dar razão ao meu insigth. Logo que sobreveio a quebra do mercado imobiliário americano e do banco de investimento Lehman Brothers, em 2008, as principais nações do mundo passaram a praticar, em fatias, um keynesianismo tópico e pervertido, injetando trilhões de dólares no salvamento de instituições financeiras, fábricas e Estados falidos. De modos parecidos, embora com sinais ideológicos trocados, a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente do Banco Central, Gustavo de Franco, a propósito, mencionaram a emersão de uma grave “crise fiscal” do Estado americano e da União Européia. Tanto a neokeynesiana Dilma ou o neoliberal Gustavo Franco, ou até mesmo o populismo de direita do Tea Party, enveredaram pelo mesmo diagnóstico. Curiosa confluência, sintoma de uma nau à deriva, devido ao deserto de alternativas, inclusive à esquerda (a direita histérica do Tea Party não é alternativa a coisa alguma; é somente desespero e reação).

Contudo, embora verdadeira, a crise fiscal, advinda das guerras e dos formidáveis gastos para conter a quebra dos bancos, atua nas camadas de superfície, uma espécie de espuma nas ondas revoltosas do mar. Nas camadas mais profundas da crise, divisamos a absoluta falência de um sistema monetário baseado numa moeda universal emitida por uma autoridade nacional, que pode sacar à vontade em descoberto, seja para realizar guerras ou salvar bancos, empresas e Estados falidos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Resenha

Vinícius de Moraes: meu tempo é quando

Colômbia: 100 anos de solidão política