Na semana do Cineport, recordo Agostinho da Silva

Jaldes Reis de Meneses

Começa esta semana em João Pessoa, ao que me parece em edição de tamanho menor, o IV Cineport (Festival de Países de Língua Portuguesa). Trata de um dos principais eventos do calendário cultural da cidade, um momento de cosmopolitismo lusitano em nossa província, às vezes desabituada, de tanto olhar para dentro das próprias vísceras, a pensar as coisas do mundo. Precisamos aprender as lições portuguesas, que sempre olharam para fora da Europa, deram as vistas para a África, a América e a Ásia, criando novas misturas e civilizações, dos trópicos à China.

Há uma imagem gasta sobre os portugueses, mas tão verdadeira que virou senso comum: a atração dos portugueses pelo mar oceano, que na literatura acompanha a escrita, de Camões a Fernando Pessoa, até, pode-se dizer mais recentemente, um José Saramago, que na bela novela “Jangada de Pedra” radicalizou a tendência lusitana de buscar o mundo afora. Na novela de Saramago, quem dá adeus ao continente europeu, ao invés de embarcações de partida – velas e navios –, é o próprio território de Portugal inteiro. É toda a parte portuguesa da península ibérica que desembarca para uma aventura incerta no oceano.

Na alegoria de Saramago (este belo construtor de alegorias contemporâneas), de alguma maneira, reconstrói-se involuntariamente o mito platônico de Atlântida (o continente perdido), no sentido de que ambos se perdem, Atlântida literalmente - sucumbe na região abissal do oceano Atlântico –, ao passo que Portugal se perde nos desvãos do contacto étnico com os outros, gerando a promessa, nos termos de Darcy Ribeiro, de uma nova Roma latina e miscigenada. Perde-se para se achar no outro. Assim que deve ser: nas viagens nos perdemos e podemos nos reencontrar através da experiência do novo.

Penso no Cineport e me impressiona como é desconhecida na Paraíba a figura e a obra intelectual de Agostinho da Silva, cuja memória esquecida desejo recordar. É uma pena não se saber, na Paraíba, quem foi Agostinho da Silva, um português genial que fez a aventura do mundo e aportou aqui na década de 1950, professor de Filosofia e História Antiga e Medieval na Universidade da Paraíba (depois UFPB), trazido por José Américo de Almeida. Antes, o professor Agostinho freqüentou os círculos modernistas do Rio de Janeiro e São Paulo – especialmente o poeta mineiro Murilo Mendes –, mas foi na Paraíba que de fato começou a aventura docente. Passou somente dois anos na província, que desgostou dos modos vanguardistas do professor.
Logo estava na Bahia fundando o CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais) da UFBA, estabelecendo, pioneiramente, o intercâmbio cultural entre Brasil e África, explorando o lado não Europeu do Atlântico.

Agostinho da Silva pregava um intercâmbio sincrético e ecumênico com a África, despido de projeto de dominação e colonização, um aprendizado mútuo no quais todos só temos a ganhar em civilidade, ou seja, traduzindo nos termos metafísicos do drama português, dissipar, através da viagem pelo mar oceano, o fogo-fátuo da melancolia sem fim e o espesso nevoeiro da desencantada realidade lusitana em tempos de Salazar, épica ao revés de Camões, versejada em “Mensagem”, o admirável poema do mais importante poeta nascido no século XX, em qualquer latitude, Fernando Pessoa (“Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../ É a hora” – Nevoeiro, Fernando Pessoa, escrito em 1928, época de vigência da “Ditadura Nacional” de 1926).

Um dos principais segredos de Fernando Pessoa ser considerado poeta maior, entre outros, é porque, no fundo, o drama português é universal, o drama da modernidade capitalista e colonial. Pois bem, no sentido da rima de Pessoa, Agostinho buscou realizar como projeto de vida, itinerante no mundo lusófono.

Agostinho da Silva trata-se de uma das figuras ancestrais do tropicalismo. Lê-se em certa passagem de seu livro autobiográfico, “Verdade Tropical”, Caetano Veloso se recordar de um “professor português vindo da Paraíba”, que dava aulas maravilhosas, libertárias, absolutamente originais. Em sala de aula, o professor pontificava sobre a possibilidade de emersão de um “quinto império teocrático do Padre Antonio Vieira”, uma comunidade universal de fraternidade. Essas idéias em futuro próximo serão decisivas para a composição, por Caetano, por exemplo, da canção “Tropicália” – manifesto do Tropicalismo.

Na verdade – e esta é a questão teórica central –, Agostinho da Silva, em tais utopias prototropicalistas, estava postulando uma versão antagônica ao “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre. Ou seja, postulando o combate à ideia salazarista – de que infelizmente o mestre pernambucano de Apipucos transformou-se em ideólogo, na segunda fase de sua obra –, de justificar o domínio colonial português (excrescência retardatária em pleno pós guerra) como diferente do inglês, francês ou belga, em virtude de os portugueses se apascentarem aos modos de vida das culturas locais. A cultura justificando a espoliação colonial.

Agostinho da Silva criticava o império colonial português, tanto que emigrou para o Brasil exatamente em virtude das perseguições de Salazar. Ao avesso de Gilberto Freyre – perversor de sua própria obra inicial –, Agostinho da Silva reinterpretava o legado lusitano, buscava nele precisamente idéias de emancipação, e o Império de São Sebastião como o profeta da fraternidade universal. Fraternidade universal, a boa nova da teologia política de Antonia Vieira (ou, ao menos, uma de suas possibilidades interpretativas – a de Agostinho da Silva). A Paraíba e a UFPB precisam saber quem foi Agostinho da Silva.

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