2011: a política das ruas
Jaldes Reis de Meneses
A revista semanal americana de maior tiragem, a Time – formadora da opinião do homem médio dos Estados Unidos –, lançou nas primeiras décadas do século passado uma escolha que em seguida fez fortuna na imprensa mundial: as indefectíveis listas jornalísticas das “personalidades do ano”, cujo primeiro lugar em geral é ocupado por chefes de Estado, líderes religiosos, artistas ou até personagens mundanos da sociedade do espetáculo. Em 2011, relevando certo “espírito de tempo” (o elogio do conformismo, da não-participação), a escolha foi diferente.
Havia um precedente. Somente por duas vezes, em vez de um personagem individual, um solidário indivíduo de carne e osso, a escolha da Time recaiu sobre um personagem coletivo. Em 1954, o escolhido foram as massas participantes da revolução húngara dos conselhos, dizimados pelas tropas do Pacto de Varsóvia. E, novamente, agora, neste formidável ano de 2011, chegou a hora do The Protester – assim mesmo, em forma substantivada, O Protestador, ou seja, os “protestadores” da “Primavera Árabe”, os jovens europeus do movimento dos desempregados e os cidadãos norte-americanos do movimento de protesto contra o capital financeiro, o “Ocupe Wall Street”.
Depois de 1968 – que não foi escolhido ao seu tempo pela Time –, eis que surge um ano no qual as ruas e as praças pontificaram na política mundial, feita a citação da notável ausência da America Latina e do nosso Brasil (os movimentos estudantis do Chile pelo ensino público devem ser mais analisados como a exceção que confirma a regra). Ao contrário do que clama o discurso de direita, com a chegada da esquerda ao poder de Estado – desde a soft de Dilma e Lula ou a hard de Chávez –, o continente vive um momento de desenvolvimento econômico e estabilização da política. Os ventos da crise econômica mundial ainda não fizeram estrago à sensação de bem-estar quase generalizado que se experimenta nos nossos países. Em suma, o ciclo econômico e político da América Latina, por enquanto, destoa do ciclo mundial. Poderia argumentar várias hipóteses de trabalho à apreciação da exceção continental, todavia me faria desviar do foco deste artigo.
Quero tratar do que denomino de “política das ruas”. Saúdo com os olhos brilhando e o coração batendo mais forte a política das ruas, mas devo também expor os desafios e impasses que acompanham os movimentos de protesto massivo. Foi bonita a festa, pá, contudo, o que fazer no “dia seguinte”?
Ao que me recorde, um dos primeiros intelectuais na modernidade que decantou a beleza do povo nas ruas (a expressão que designava The Protester nos séculos XVIII e XIX) foi o historiador romântico francês Jules Michelet.
Em páginas que hoje são um clássico não apenas da historiografia, mas da literatura, Michelet atribui à Revolução Francesa, mais que à ação do Abade Sieyès (o intelectual que lançou a proclamação do poder ao Terceiro Estado) ou aos clubes secretos, às figuras anônimas, tipo ideais, de “Jaques”, o simples camponês, e das mulheres oprimidas. Para ele, a explosão revolucionária tinha o rosto sem nome das mulheres sem direitos e dos camponeses explorados pela corvéia feudal.
No entanto, conforme Michelet, o segundo ato da revolução francesa produziu um paradoxo: o produtivismo das massas anônimas logo feneceu; sucedeu um processo de transferência de poder para um “outro” sujeito, os jacobinos (que Michelet comparava aos jesuítas, um compacto partido determinado a alcançar um objetivo). É uma maneira cativante, mas superficial, de abordar o problema. Michelet realmente era um romântico: não analisava as revoluções como estratégia, como relações de forças, enfim, como capacidade de direção política, apenas como explosão.
O “paradoxo de Michelet” – chamemo-lo assim – revive nos processos atuais: à promessa difusa de democracia dos manifestantes da Praça Tahrir no Cairo (Egito) adveio as eleições na qual se sagrou vencedora a Irmandade Mulçumana, um grupo tradicional da política islamita, o que mais havia de organizado na sociedade civil egípcia quando do estouro dos protestos. É importante ressaltar que, embora tenha participado da praça, a Irmandade não comandou o movimento. Até como tática, escondeu seu programa.
Pois bem, a praça tentou boicotar as eleições, mas só conseguiu atrair a repressão militar. Nada com capacidade de direção política foi criado diretamente da praça, cuja potência foi aproveitada exatamente pela capacidade de direção política da Irmandade, que tinha uma proposta para o “dia seguinte”. Da mesma maneira, os protestantes de Wall Street ou os jovens desempregados espanhóis, entre milhões de manifestantes, precisam aprender uma exercitar o dia seguinte no hoje. A própria Time, aliás, tem uma proposta de lugar para os movimentos, retirando-lhes quaisquer veleidades emancipacionistas: os rebaixa ao papel de “advertência” às autoridades.
Afirmar que 2011 foi o belo ano cenográfico do “protestador” é bonito, porém insuficiente. Que 2012 seja um ano de emancipações e não simplesmente das oportunidades perdidas. Estas são as minhas últimas palavras, direto de 2011. A vida é bela e contraditória, felicidades a todos os que me lêem.
A revista semanal americana de maior tiragem, a Time – formadora da opinião do homem médio dos Estados Unidos –, lançou nas primeiras décadas do século passado uma escolha que em seguida fez fortuna na imprensa mundial: as indefectíveis listas jornalísticas das “personalidades do ano”, cujo primeiro lugar em geral é ocupado por chefes de Estado, líderes religiosos, artistas ou até personagens mundanos da sociedade do espetáculo. Em 2011, relevando certo “espírito de tempo” (o elogio do conformismo, da não-participação), a escolha foi diferente.
Havia um precedente. Somente por duas vezes, em vez de um personagem individual, um solidário indivíduo de carne e osso, a escolha da Time recaiu sobre um personagem coletivo. Em 1954, o escolhido foram as massas participantes da revolução húngara dos conselhos, dizimados pelas tropas do Pacto de Varsóvia. E, novamente, agora, neste formidável ano de 2011, chegou a hora do The Protester – assim mesmo, em forma substantivada, O Protestador, ou seja, os “protestadores” da “Primavera Árabe”, os jovens europeus do movimento dos desempregados e os cidadãos norte-americanos do movimento de protesto contra o capital financeiro, o “Ocupe Wall Street”.
Depois de 1968 – que não foi escolhido ao seu tempo pela Time –, eis que surge um ano no qual as ruas e as praças pontificaram na política mundial, feita a citação da notável ausência da America Latina e do nosso Brasil (os movimentos estudantis do Chile pelo ensino público devem ser mais analisados como a exceção que confirma a regra). Ao contrário do que clama o discurso de direita, com a chegada da esquerda ao poder de Estado – desde a soft de Dilma e Lula ou a hard de Chávez –, o continente vive um momento de desenvolvimento econômico e estabilização da política. Os ventos da crise econômica mundial ainda não fizeram estrago à sensação de bem-estar quase generalizado que se experimenta nos nossos países. Em suma, o ciclo econômico e político da América Latina, por enquanto, destoa do ciclo mundial. Poderia argumentar várias hipóteses de trabalho à apreciação da exceção continental, todavia me faria desviar do foco deste artigo.
Quero tratar do que denomino de “política das ruas”. Saúdo com os olhos brilhando e o coração batendo mais forte a política das ruas, mas devo também expor os desafios e impasses que acompanham os movimentos de protesto massivo. Foi bonita a festa, pá, contudo, o que fazer no “dia seguinte”?
Ao que me recorde, um dos primeiros intelectuais na modernidade que decantou a beleza do povo nas ruas (a expressão que designava The Protester nos séculos XVIII e XIX) foi o historiador romântico francês Jules Michelet.
Em páginas que hoje são um clássico não apenas da historiografia, mas da literatura, Michelet atribui à Revolução Francesa, mais que à ação do Abade Sieyès (o intelectual que lançou a proclamação do poder ao Terceiro Estado) ou aos clubes secretos, às figuras anônimas, tipo ideais, de “Jaques”, o simples camponês, e das mulheres oprimidas. Para ele, a explosão revolucionária tinha o rosto sem nome das mulheres sem direitos e dos camponeses explorados pela corvéia feudal.
No entanto, conforme Michelet, o segundo ato da revolução francesa produziu um paradoxo: o produtivismo das massas anônimas logo feneceu; sucedeu um processo de transferência de poder para um “outro” sujeito, os jacobinos (que Michelet comparava aos jesuítas, um compacto partido determinado a alcançar um objetivo). É uma maneira cativante, mas superficial, de abordar o problema. Michelet realmente era um romântico: não analisava as revoluções como estratégia, como relações de forças, enfim, como capacidade de direção política, apenas como explosão.
O “paradoxo de Michelet” – chamemo-lo assim – revive nos processos atuais: à promessa difusa de democracia dos manifestantes da Praça Tahrir no Cairo (Egito) adveio as eleições na qual se sagrou vencedora a Irmandade Mulçumana, um grupo tradicional da política islamita, o que mais havia de organizado na sociedade civil egípcia quando do estouro dos protestos. É importante ressaltar que, embora tenha participado da praça, a Irmandade não comandou o movimento. Até como tática, escondeu seu programa.
Pois bem, a praça tentou boicotar as eleições, mas só conseguiu atrair a repressão militar. Nada com capacidade de direção política foi criado diretamente da praça, cuja potência foi aproveitada exatamente pela capacidade de direção política da Irmandade, que tinha uma proposta para o “dia seguinte”. Da mesma maneira, os protestantes de Wall Street ou os jovens desempregados espanhóis, entre milhões de manifestantes, precisam aprender uma exercitar o dia seguinte no hoje. A própria Time, aliás, tem uma proposta de lugar para os movimentos, retirando-lhes quaisquer veleidades emancipacionistas: os rebaixa ao papel de “advertência” às autoridades.
Afirmar que 2011 foi o belo ano cenográfico do “protestador” é bonito, porém insuficiente. Que 2012 seja um ano de emancipações e não simplesmente das oportunidades perdidas. Estas são as minhas últimas palavras, direto de 2011. A vida é bela e contraditória, felicidades a todos os que me lêem.
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