Considerações extemporâneas
Jaldes Reis de Meneses
Ao final da noite de terça-feira, ainda acordado e sonolento, os sentidos dos meus olhos e ouvidos um tanto em estado alfa, desatento ao chato desenvolvimento do enredo da série global “Brado retumbante”, meu corpo parecia finalmente ceder ao sono. No entanto, a cena de uma sentença peremptória pronunciada pelo interlocutor do presidente brasileiro de ficção, Paulo Ventura – às voltas com o dilema de aceitar a opção transexual de um filho –, me pôs os neurônios a funcionar a pleno vapor – “Paulo, você ainda é um homem do século XX”.
Curiosa coincidência. Havia lido a mesma frase no sábado, em um artigo de meu caro amigo de adolescência, o jornalista Silvio Osias, no jornal “Correio da Paraíba”, a propósito do hábito de cultivo pelos jovens de hoje de música a granel, através dos arquivos de MP3, e o conseqüente desaparecimento em música pop do conceito de “álbum” – a experiência de audição de uma série de canções cujo conteúdo forma uma totalidade temática –, de que “Sargent Pepper’s” (1967) dos Beatles sem dúvida é um marco, sei que concordamos tanto eu como Silvio, com saudades dos tempos de 1976 em que escutávamos música quase todas as noites no alpendre de sua casa, na Avenida Conceição em Jaguaribe.
Deixem-me completar o raciocínio com um terceiro exemplo, mais remoto. Em trecho de seu belo depoimento pouco antes de morrer em 1970, no pequeno livro “Pensamento vivido”, o entrevistador pergunta a Georg Lukács um veredicto sobre as vanguardas artísticas, ao que ele responde, um tanto na defensiva, algo assim – “eu sou um homem do século XIX”.
Três contextos diferentes, a mesma sentença. Poderia multiplicar outros exemplos. O acaso não acontece à toa. Isto pode significar que existe disseminado aleatoriamente aí pelo mundo certo espírito do tempo de ultrapassagem da cultura do século XX, no que tinha de ruim (o preconceito) e de bom (a concentração na fruição artística). O problema é quando o “espírito de tempo” impõe-se na condição de imperativo categórico, norma de conduta discriminatória da pseudo “atualização” de uns e “desatualização” de outros. Dividir o mundo entre “atualizados” e “desatualizados” é o terreno da ilusão e da ideologia: o chamamento a comportar-se em manada, através de um padrão único, é precisamente por onde se esvai o pensamento crítico.
Na verdade, antes de sermos de século XX ou XXI, melhor sermos extemporâneos. Obviamente, minha referência neste caso é Nietzsche, que se dizia alegremente um extemporâneo, um homem “fora ou além do tempo”. Estou de acordo do Drummond em seu belo verso, “... ficou chato ser moderno, agora serei eterno”. Com este verso, o poeta mineiro estava ultrapassando uma fase de sua poesia, nos primeiros livros integrados aos cânones do movimento modernista (o verso livre, o poema piada, etc.) e alçando uma dimensão nova, propondo-se a dialogar com toda a tradição poética universal. Não estou fazendo crítica literária, mais que isso, estou pontuando que, ao se propor fazer “poesia eterna”, Drummond estava praticando duas ações: aumentando o grau de exigência estética de sua poética, já que a medição de qualidade, doravante, passava a ser toda a tradição poética, em vez do gueto modernista, e principalmente, existencialmente, alçando a liberdade.
Em síntese, Drummond, ao dialogar com a tradição universal em poesia escapava de querer parecer um eterno “jovem modernista” – detesto os macaquinhos que querem parecer eternos jovens de acordo com os cânones da moda, pais sem senso do ridículo que se comportam como os filhos –, como também, como pode a primeira vista parecer, não assumia a posição de uma sabedoria especial conservadora, feito Nelson Rodrigues, ao aconselhar os jovens a “envelhecer”.
Para mim, o giro libertário de Drummond consiste em alternar os parâmetros da questão: tanto o “eterno jovem” como o “velho conservador” são reações bobas ao fenômeno do tempo, a recusa em reconhecer como Santo Agostinho, que o tempo é o mais misterioso dos conceitos. Ser extemporâneo nada mais é que colocar-se à altura do mistério do tempo. Como diz Paulinho da Viola: gostar de Cartola ou Noel Rosa não é saudosismo, mas trazê-los ao tempo de hoje. Vou mais longe: gostar de Adele ou Amy Winehouse (duas cantoras talentosíssimas), não significa querer se curvar aos saborosos gostos juvenis das duas (prefiro os gostos de Adele), mas simplesmente reconhecê-las, por assim dizer, imersas no mistério do tempo.
Gosto de sair às ruas de qualquer cidade grande – flaneur benjaminiano – e admirar como hoje as pessoas trajam de maneira diferente e reinventam a ditadura padrão da calça jeans e das camisas de grife: alguns de gravata e paletó, outros de piercing e tatuagem, uns poucos juntando tudo, um caleidoscópio imenso de formas, cores, combinações, estilos de vida e comportamento. Todos são do mesmo tempo por que não precisamos ser iguais para cultivar o valor da igualdade: somos os extemporâneos do século XXI. Que a lição das ruas chegue ao pensamento.
Ao final da noite de terça-feira, ainda acordado e sonolento, os sentidos dos meus olhos e ouvidos um tanto em estado alfa, desatento ao chato desenvolvimento do enredo da série global “Brado retumbante”, meu corpo parecia finalmente ceder ao sono. No entanto, a cena de uma sentença peremptória pronunciada pelo interlocutor do presidente brasileiro de ficção, Paulo Ventura – às voltas com o dilema de aceitar a opção transexual de um filho –, me pôs os neurônios a funcionar a pleno vapor – “Paulo, você ainda é um homem do século XX”.
Curiosa coincidência. Havia lido a mesma frase no sábado, em um artigo de meu caro amigo de adolescência, o jornalista Silvio Osias, no jornal “Correio da Paraíba”, a propósito do hábito de cultivo pelos jovens de hoje de música a granel, através dos arquivos de MP3, e o conseqüente desaparecimento em música pop do conceito de “álbum” – a experiência de audição de uma série de canções cujo conteúdo forma uma totalidade temática –, de que “Sargent Pepper’s” (1967) dos Beatles sem dúvida é um marco, sei que concordamos tanto eu como Silvio, com saudades dos tempos de 1976 em que escutávamos música quase todas as noites no alpendre de sua casa, na Avenida Conceição em Jaguaribe.
Deixem-me completar o raciocínio com um terceiro exemplo, mais remoto. Em trecho de seu belo depoimento pouco antes de morrer em 1970, no pequeno livro “Pensamento vivido”, o entrevistador pergunta a Georg Lukács um veredicto sobre as vanguardas artísticas, ao que ele responde, um tanto na defensiva, algo assim – “eu sou um homem do século XIX”.
Três contextos diferentes, a mesma sentença. Poderia multiplicar outros exemplos. O acaso não acontece à toa. Isto pode significar que existe disseminado aleatoriamente aí pelo mundo certo espírito do tempo de ultrapassagem da cultura do século XX, no que tinha de ruim (o preconceito) e de bom (a concentração na fruição artística). O problema é quando o “espírito de tempo” impõe-se na condição de imperativo categórico, norma de conduta discriminatória da pseudo “atualização” de uns e “desatualização” de outros. Dividir o mundo entre “atualizados” e “desatualizados” é o terreno da ilusão e da ideologia: o chamamento a comportar-se em manada, através de um padrão único, é precisamente por onde se esvai o pensamento crítico.
Na verdade, antes de sermos de século XX ou XXI, melhor sermos extemporâneos. Obviamente, minha referência neste caso é Nietzsche, que se dizia alegremente um extemporâneo, um homem “fora ou além do tempo”. Estou de acordo do Drummond em seu belo verso, “... ficou chato ser moderno, agora serei eterno”. Com este verso, o poeta mineiro estava ultrapassando uma fase de sua poesia, nos primeiros livros integrados aos cânones do movimento modernista (o verso livre, o poema piada, etc.) e alçando uma dimensão nova, propondo-se a dialogar com toda a tradição poética universal. Não estou fazendo crítica literária, mais que isso, estou pontuando que, ao se propor fazer “poesia eterna”, Drummond estava praticando duas ações: aumentando o grau de exigência estética de sua poética, já que a medição de qualidade, doravante, passava a ser toda a tradição poética, em vez do gueto modernista, e principalmente, existencialmente, alçando a liberdade.
Em síntese, Drummond, ao dialogar com a tradição universal em poesia escapava de querer parecer um eterno “jovem modernista” – detesto os macaquinhos que querem parecer eternos jovens de acordo com os cânones da moda, pais sem senso do ridículo que se comportam como os filhos –, como também, como pode a primeira vista parecer, não assumia a posição de uma sabedoria especial conservadora, feito Nelson Rodrigues, ao aconselhar os jovens a “envelhecer”.
Para mim, o giro libertário de Drummond consiste em alternar os parâmetros da questão: tanto o “eterno jovem” como o “velho conservador” são reações bobas ao fenômeno do tempo, a recusa em reconhecer como Santo Agostinho, que o tempo é o mais misterioso dos conceitos. Ser extemporâneo nada mais é que colocar-se à altura do mistério do tempo. Como diz Paulinho da Viola: gostar de Cartola ou Noel Rosa não é saudosismo, mas trazê-los ao tempo de hoje. Vou mais longe: gostar de Adele ou Amy Winehouse (duas cantoras talentosíssimas), não significa querer se curvar aos saborosos gostos juvenis das duas (prefiro os gostos de Adele), mas simplesmente reconhecê-las, por assim dizer, imersas no mistério do tempo.
Gosto de sair às ruas de qualquer cidade grande – flaneur benjaminiano – e admirar como hoje as pessoas trajam de maneira diferente e reinventam a ditadura padrão da calça jeans e das camisas de grife: alguns de gravata e paletó, outros de piercing e tatuagem, uns poucos juntando tudo, um caleidoscópio imenso de formas, cores, combinações, estilos de vida e comportamento. Todos são do mesmo tempo por que não precisamos ser iguais para cultivar o valor da igualdade: somos os extemporâneos do século XXI. Que a lição das ruas chegue ao pensamento.
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