Festim diabólico

Jaldes Reis de Meneses

O homem é um animal de encruzilhada. Não é atavicamente bom nem intrinsecamente mau. Somos um gênero ou uma espécie esquisita dos animais, situada no abismo entre a civilização, a urbanidade, e o “inumano” – esta última palavra a paradoxal expressão criada pela psicanálise francesa, especialmente Jaques Lacan, ou seja, buscando dar conta do reconhecimento da existência de um núcleo duro de insociabilidade em todos nós, testado em tempo integral nas relações sociais cotidianas. Alguns pensadores, como Nietzsche buscaram pensar a encruzilhada a partir de um movimento de superação entre o bem o e mal – sintetizados na parábola do além-homem ou do super-homem –, outros, como Rousseau, pronunciaram o veredicto de que foi a sociedade moderna, desigual e consumista, que perverteu as nossas virtudes naturais em vícios privados. Neste artigo, por demorado, vou me abster da filosofia e procurar o exemplo síntese da arte.

O homem foi concebido como encruzilhada nos tempos do teatro popular da tragédia grega, que no fundo (Hegel diria, em seu conceito) tinha um papel de conservação social pouco percebido nos dias de hoje. Assistindo à representação da vida encenada e realizando por isso uma catarse – a bela expressão aristotélica que substitui o antecedente histórico do exorcismo dos feiticeiros –, de alguma maneira se realizava em ato a uma expiação das dores do mundo.

Desde sempre umas das maneiras de exorcizar a tendência ao mal entre os homens foi representá-lo pela arte. Este o sentido profundo da frase de Nelson Rodrigues de que ele não via diferença entre a tragédia grega e o dramalhão das novelas mexicanas. Não há mesmo.

É preciso olhar a tragédia de frente, olho no olho, ou ao menos representá-la, que nada mais é que racionalizá-la. Desta maneira, quando lemos um romance de Fiódor Dostoiévski, repleto de personagens em situações humanas de limite, a exemplo da urdidura do homicídio por Raskólhnikov em “Crime e castigo” ou a degradação paulatina do grupo político terrorista de Nietcháiev em “Os demônios”, ou mesmo o serial killer tomado por um estado de possessão no romance/cinema de “O iluminado” (respectivamente escrito em livro por Stephen King, adaptado para o cinema por Stanley Kubrick), é por que precisamos periodicamente, sempre e sempre, realizar a nossa própria cartase.

Há um adágio comum de que quem lê ou assiste, repete. Só esporadicamente. A reação mais comum é introjetar os atos do inumano representado como interdito. Por isso, se enganam os que pensam que toda a arte é despossuída de uma dimensão ética e moral. Ao contrário. Simples e realisticamente a ética objetiva da arte significa que ao vermos ou lermos encenadas as misérias da mente humana somos automaticamente instados a não repeti-las. Educar pela arte, portanto, é uma forma de garantir a continuidade da civilização.

Penso nestas questões aparentemente longinquas quando leio nos jornais a notícia dos crimes sequenciados de estrupro e homícidio em Queimadas, cidade interiorana da Paraíba, aparecentemente pacata, como também eram pacatas as cidades de “Veludo Azul” (filme de David Lynch) ou de Dogville (de Lars von Trier).

Repetir o cliche que foi cometido um crime bárbaro é nada entender de barbárie e de Idade Média, como se tivessemos vivido em recentemente, a partir da modernidade, em um tempo histórico imune às manifestações do “inumano”. Em lugar de “bárbaros” foram perpetardos crimes “inumanos”.

“Que está havendo com o ser humano?”, pergunta na televisão, por coincidência, enquanto escrevo este artigo (não tenho problema de concentração em escrever com barulho ou vendo televisão), o Louro José de Ana Maria Braga, a propósito de comentar o mesmo crime de Queimadas. Poderia devolver ao Louro a pergunta, perenizando-a numa espécie de caixa acústica do eterno presente: - “o que há com o ser humano”, querido e simpático papagaio?

Em cenários diferentes (no filme, era um apartamento metropolitano; na vida “real” uma casinha no cariri), há um filme de Alfred Hitchcock – Rope, “Festim diabólico” no interessante título brasileiro – que num aspecto essencial se parece como que um remake paradoxal antecedente, por assim dizer, dos acontecimentos de Queimadas: na ficção, o homicídio planejado de um colega de faculdade, foi festejado pelos convivas numa festa literalmente sobre o cadáver, escondido embaixo de um centro de flores na sala do apartamento, ao passo que os homicidas e estrupadores de Queimadas planejaram um festim de luxúria e servícias, que só poderia resultar ao cabo em estrupo e homicídio.

Humano, demasiado inumano.

Comentários

Damião de Lima disse…
Caro Jaldes
Parabéns pelo brilhante artigo.
Damião de Lima

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