J. Edgar Hoover: sexualidade e poder

Jaldes Reis de Meneses

O artista consciente de seu ofício, em pleno domínio do artesanato estético, jamais escolhe de improviso os elementos de sua composição. O filme “J. Edgar” (direção de Clint Eastwood, em exibição nos cinemas da cidade) contém pelo menos duas escolhas estéticas aparentemente simples que compõem o fundo sobre o qual vai girar o conteúdo da narrativa.

A começar pelo próprio título: figura pública, o chefe do FBI por 44 longos anos era mais conhecido na imprensa como J. Hoover do que J. Edgar, como talvez fosse chamado na intimidade. Em seguida, a fotografia soturna, repleta de sombras, em que são captados os anos 20 do século passado e o período do New Deal (anos 30 e 40) – período da juventude de Hoover, no qual ele montou a máquina investigativa do FBI -, contrasta com o colorido das cenas públicas dos anos 70 (a exemplo da parada pública da vitória presidencial de Nixon).

Qual o motivo das escolhas? A do título é evidente. O diretor quer ir mais fundo na dissecação da personalidade de J. Edgar Hoover, contornando os sentimentos de asco ou adesão inevitáveis quando o assunto é um personagem histórico polêmico, homem de convicções de direita, de métodos de trabalho oscilante entre o racional e o truculento. O objetivo de Eastwood é definitivamente pretensioso: sem desprezar o lado público do personagem, presente no filme, o diretor pretende investigar os recantos da alma de Hoover, até mesmo sua relação com a sexualidade. Em se tratando de um homem que montou e comandou com mão de ferro décadas a fio a maior e mais competente máquina policial de que se tem notícia – o FBI americano –, a questão central do filme, enfim, reside nas relações entre sexualidade e poder.

Não é um tema fácil. Desde após os tempos dos césares romanos, especialmente através das caricaturas de Nero e Calígula, as relações entre sexualidade e poder são condenadas. A bem da civilização, deve-se dissociar um do outro, este foi o argumento cristão à decadência do Império Romano. Contudo, expulso pela porta, a sexualidade sempre retorna pelas frestas, pelo pensado impronunciável. O fascismo, por exemplo, embora aparentemente casto e disciplinador, se examinarmos de perto, é pura simbiose entre sexo e vontade de potência. Não é à toa que todo o alto comando das SA (tropas de assalto) hitlerista era composto de homossexuais. O excesso de poder pode liberar também as pulsões sexuais, disso sempre soube qualquer cortesão, desde o velho Rasputin na corte dos Romanov.

Evidentemente, a homossexualidade é das expressões livres que pode assumir a sexualidade, não é este o ponto central, mas o elemento de que o fascismo mascara as relações de sexo e poder – é uma para dentro e outra para fora. Quem expressou notavelmente no cinema as relações entre fascismo e sexualidade no cinema foi Pier Paolo Pasolini, em “Saló, ou 120 dias de Sodoma”.

Seria inconcebível um agente de poder que escondesse suas preferências sexuais, feito J. Edgar Hoover, casto e homossexual, em tempos gregos ou romanos, assim como hoje as autoridades começam a sair do armário. Falo um óbvio repleto de conseqüências: os anos de começo do século XX são registrados de maneira soturna pela lente de Clint Eastwood por que estes foram os tempos finais de égide da moral vitoriana – puritana e ascética –, combinados com nascimento do fordismo como método de organização da produção e do consumo de massas. Inclusive nos métodos policiais, pois qual o significado da compulsão de Hoover pela inteligência e a racionalidade investigativa senão uma espécie de transposição do fordismo para as sendas da polícia? Longe da pretensão de ser um filme noir policial dos anos 30 ou expressionismo alemão dos anos 20, há reminiscência de ambos na fotografia do filme de Eastwood, no sentido de que os dois (noir e expressionismo) são transgressões do vitorianismo, porém, inescapavelmente contemporâneo a ele.

O vitorianismo morreu como moral burguesa. É nisto que Lacan estava pensando quando decretou a morte do pai. E o pai entrou em crise exatamente na época e nas frestas do fordismo. J. Edgar Hoover é uma cria sexual típica da “morte do pai”, um jovem de pai fraco totalmente sucumbido pela mãe controladora, que tinha sonhos de potência para o filho. Embora identificado com a figura feminina da mãe – assimilou a vontade de potência que ela lhe transmitiu –, no reino da sociedade, Hoover só poderia ter vez e voz se assumisse a carapuça de um “macho”. Assim fez-se o homem duro.

Em termos específicos de cinema, é vitoriano o raciocínio de André Bazin quando ele afirmou num texto famoso (“À margem do erotismo no cinema”, 1957), que o ato sexual jamais se poderia consumar diante das câmeras, pois equivaleria a exigir que, “num filme policial se mate verdadeiramente a vítima”. “J. Edgar” é um filme que retrata o tempo em que não se filmava o ato sexual no cinema, ao contrário dos anos 70, a partir de quando se filma o ato sexual o tempo inteiro (“Garganta profunda” é um marco da história do cinema?, acho que sim). Pode-se dizer que se morre a cada vez que o sexo aparece sem cortes em cena, mas filma-se. No filme de Clint Eastwood os anos 70 são mais coloridos. Nem por isso mais fáceis. Mas este seria o mote para outro artigo... Quem sabe sobre outro filme, “Milk”, “Filadélfia”, “Morte em Veneza” ou “Brokeback Mountain”?

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