O vôo da coruja

Jaldes Reis de Meneses

Em definitivo não se realizou no século XXI o anseio kantiano de paz perpétua no mundo, uma sociedade civil cosmopolita composta de sujeitos iguais, complementado por uma nova entidade universal soberana (talvez um Estado, mas sem exército permanente, contudo respeitador do novo direito internacional público dos povos). Esta foi uma idéia acalentada há alguns anos passados, entre 1989 e 1991, quando caíram de podre a antiga União Soviética e os estados satélites do leste e do centro da Europa.

No fundo, todas essas promessas eram discursos pronunciados pela boca de falsos profetas, pois o máximo que nos foi oferecido, pseudo cidadãos globais, em vez da generosidade kantiana, foram as teorias do “fim da história” de Francis Fukuyama, que repetiam, com um século e meio de atraso, as teses originais de Hegel, relativas à realização do espírito absoluto na história.

A diferença crucial é que o fim da história de Hegel é um desiderato realista, quem o lê com a devida atenção percebe que ele não mente nem é cínico – sob a capa de consecução no mundo de um “Estado Ético”, se tratava de realizar a verdade de um aparato conduzido por uma burocracia que fazia as vezes de “classe universal” –, ao passo que Fukuyama trata de esconder o aparado de poder do Estado liberal vitorioso e antevia simplesmente um período de paz mundo. O grande valor e a grandeza de Hegel residem no fato de que ele é um autor trágico, a história do mundo é composta de enfretamentos e violências e a felicidade apenas uma página em branco. Fukuyama descoloriu a dimensão trágica de Hegel, e disse que a sociedade do “fim da história” (para ele, a predominância do ethos liberal) seria um sonolento desfilar de banalidades cotidianas.

Imaginem a coruja de minerva de Hegel (a bela metáfora com a qual Hegel imaginou a razão) acordando durante a madrugada de hoje para inspecionar o trabalho que os homens fizeram de dia. Se pousar em seu terreno favorito – a acrópole de Atenas – verá sobranceira na praça ao lado uma guerra entre cidadãos comuns e as forças policiais do próprio Estado que deveria guardar a segurança dos cidadãos.

Pior ainda se a coruja voar um pouco Mediterrâneo acima e der de cara com a Síria – antiga posse do Império Romano – consumida em uma guerra civil sem guarida a lei de nenhuma espécie, uma guerra de todos contra todos que não respeita a integridade física nem de jornalistas correspondentes estrangeiros. Embora a sua origem seja grega, feito Heródoto, a coruja sempre guardou o maior respeito pelos persas, povo guerreiro que esteve à altura dos gregos nas Guerras Médicas. Parece que agora os persas (o Irã) estão se preparando novamente para guerra, em vias de produzir um artefato atômico, isto se, do outro lado, bem próximo, separado pelo Líbano e a própria Síria, os judeus (Israel) não se lançarem contra os persas em uma guerra preventiva. Bastam os exemplos, aonde a pobre coruja acaso apontar suas asas a guerra estará sendo celeremente urdida no mundo: em vez da paz a guerra.

A primeira guerra mundial (1914-1918) começou nos Bálcãs, embora estivesse sendo urdida pelos diversos nacionalismos a pelo menos uma década; a segunda guerra começou com a recusa da Grã-Bretanha em aceitar a ocupação da Polônia pelas tropas nazistas de Hitler, depois de entregar de bandeja a desaparecida Tchecoslováquia. De alguma maneira, ao contrário de hoje, se intuía por onde a guerra poderia começar. Hoje os cenários são tantos que a guerra pode começar tanto pelo oriente médio (o cenário mais cotado), mas não possa ser descartada uma clássica explosão de luta de classes na Europa. A primeira guerra mundial teve vinte milhões de mortos, a segunda dobrou o número; quantos milhões de mortos serão enterrados – com ou sem sepultura – na nova guerra que se está divisando no horizonte? Vai dormir, pobre coruja!

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