Oito de março, o dia triunfal de Fernando Pessoa

Jaldes Reis de Meneses

No começo do ano de 1935, próximo da data de desaparecer precocemente, encantar-se e virar estrela, com apenas um livro publicado (Mensagem), o poeta lusitano Fernando Pessoa escreveu uma carta, famosa a posteriori, ao crítico literário Adolfo Casais Monteiro, na qual relata os acontecimentos do dia 08 de março, numa longínqua tarde de 1914, o “dia triunfal” de sua vida.

O “dia triunfal” deu-se à maneira de um “estalo de Vieira”: em um dia aparentemente banal, de repente a partir de um transe inspirado do poeta, vieram à vida no território livre da linguagem, alojados na pisque, os três heterônimos mais célebres de sua imensa coleção de 72 heterônimos de Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Comemora-se no mundo inteiro e é feriado nacional na Irlanda, o dia 16 de junho – o Bloomsday – alusivo às horas de Odisséia do personagem de James Joyce em Ulisses, Leopold Bloom, pelas ruas de Dublin. Porém, ao contrário de Joyce, até hoje, o “dia triunfal” de Fernando Pessoa passou praticamente incólume no calendário das efemérides. Verdade ou mentira, pouco importa, proponho doravante que, mesmo em concorrência com a estação do carnaval e o dia internacional da mulher, devam-se organizar saraus de leitura dos poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos. Procuro parceiros para tal empreendimento. Em 2010, por iniciativa do poeta carioca Eucanãa Ferraz, o Brasil começou a comemorar do “Dia D”, em homenagem a Carlos Drummond de Andrade. Pois que se comemore também, a oito de março, o “Dia Triunfal”.

O poeta lusitano trata-se de uma daquelas unanimidades da literatura moderna. Mas ao mesmo tempo é esfinge, cuja obra aberta de imensa riqueza literária pode ser elucidada em várias vertentes. Desde a mais comum, a psicológica, alusiva à capacidade de despersonalização do autor – em seus próprios termos, a capacidade de “outrar-se” – até uma possível, mais rara, leitura sistemática do projeto filosófico escondido nas dobras dos versos, sem esquecer, é claro, o autor moderno ao revés de Camões, no sentido de que o primeiro cantou a glória e o segundo versejou em Mensagem uma espécie de ode antiépica ao desaparecimento dos tempos de glória.

Contudo, ao cantar o fogo-fátuo da melancolia sem fim e o espesso nevoeiro da desencantada realidade lusitana, Fernando Pessoa não estava rigorosamente abrindo sendas. Recordo-me de uma brilhante passagem de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, na qual ele menciona que mesmo em Camões já há um escapismo, visto que o bardo caolho já cantava as glórias do passado recente em vez do presente, mas isso é assunto para outro artigo, a propósito das contradições da épica, pois nem em Camões nem em Fernando Pessoa, ao contrário de Virgílio (poeta oficial romano nos tempos de Octávio Augusto), havia, aliado à glória ou à sua perda, a materialidade de um império que dominava o mundo.

Antes de explorar as vertentes da ode antiépica e da despersonalização psicológica, para mim, na ocasião do “dia triunfal” é mais apropriado falar do indiscutível projeto filosófico de Fernando Pessoa. Fontes ancestrais de um mesmo riacho da linguagem, a principal contribuição da poesia à filosofia é a criação de mitos individuais que logo se tornam patrimônio social compartilhado. Nos termos do poeta e filósofo carioca Antonio Cicero, criar mitos é precisamente um dos índices de modernidade em poesia, pois se trata de uma criação de um indivíduo que ganha o mundo. É claro que, neste caso, as fronteiras entre mito, filosofia e poesia são móveis, vide o exemplo óbvio de Platão: embora fosse filósofo e renegasse o papel do poeta na polis, Platão foi um criador de mitos; portanto, de alguma maneira, ao criar mitos como o de Atlântida, o continente perdido, contraditoriamente estava no campo da poesia.

Fernando Pessoa tinha muita clareza de tudo isso, ele repetia insistentemente que o mais reles poeta de província tinha algo da grandeza de Homero. Há um heterônimo estritamente filosófico em Fernando Pessoa, Antonio Mora, junto com Álvaro de Campos (o poeta moderno) e Ricardo Reis (o poeta clássico), um discípulo fundamental de Alberto Caeiro (o poeta pagão). De alguma maneira, o paganismo espontâneo de Caeiro é repaginado em termos de filosofia de jargão acadêmico por Antonio Mora.

Nesta trama de heterônimos, chega-se à concepção desejada por Fernando Pessoa como uma utopia para mundo. Um mundo, enfim, no qual o ser humano e a poesia se confundem, não há não há divisão, nem trauma, nem tormenta romântica, embora, é claro, é humano, deva haver dor e melancolia. Ouro puro, água límpida de riacho.
O poeta liberto da alienação, um poeta alegre em sua discrição e principalmente fiel ao mundo que viveu e descreve sem preocupações estritas com realismo, embora totalmente imerso na realidade.

Qual o poeta desta linhagem, senão Alberto Caiero, em sua espontaneidade? Mesmo assim, há “fingimento” em Caiero – deslindado por Antonio Mora, por outro lado quando também se trata na verdade de poetizar os fundamentos da filosofia empírica, sob o disfarce de um panteísmo espinosiano. Encerro o presente artigo, como não poderia deixar de ser, com uma mensagem enigmática: Caeiro é espontaneidade, mas também metalinguagem, filosofia da filosofia.

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