A lira dos setenta anos

Paul McCartney, Gilberto Gil e Caetano Veloso (quem mais?) completam 70 anos, atuantes, produtivos e, ouso afirmar, ainda em evolução no desenvolvimento de suas carreiras, que só devem se esgotar com a morte. Desmistifico, de imediato, a palavra morte: qualquer um de nós pode estar propenso a morrer no próximo minuto, seja por um assalto na esquina ou uma mágoa definhadora do espírito, da mesma maneira que começamos a envelhecer no preciso instante em que somos gerados. Morre-se porque se está vivo e nada é imortal.

Não passa de preconceito atribuir a quem chega aos 70 anos a proximidade sonambúlica da morte. Poder-se-ia revirar o argumento pelo avesso, embora esteja longe do senso comum: aos 70, os sentidos podem encontrar novas fragrâncias e ressonâncias, impulsionar desafios e enigmas ainda imberbes à decifração. Goethe, escritor clássico alemão do século XIX, um dos pais da língua(e para Lukács também um grande político recalcado convivendo com um cientista mediano), viveu até a idade madura (não é por acaso que invoco fragrâncias e ressonâncias, argüindo um escritor que estudou cientificamente as cores), mas realmente ele foi uma exceção, diferente de hoje em dia: jamais (felizmente) alcançaremos a imortalidade, mas já alçamos conceber experimentar a longevidade, de maneira que a vida é sempre um risco, qualquer que seja a idade.

Um parêntesis. Estava programando na cabeça um artigo um pouco mais longo (que devo escrever) para o aniversário de setenta anos de Caetano Veloso, em agosto, em muito motivado por uma história pessoal que muito me toca: escuto música desde muito cedo e convivi em ambiente musical, porém tenho enorme dificuldade em decorar melodias e letras de música. Não nasci com vocação de músico, embora seja uma enciclopédia ambulante para decorar datas de canções, parcerias, produtores, enfim, a ficha técnica de muitas gravações clássicas de MPB, jazz e rock.

Não quero fazer artigo de fã (fã costuma abandonar as cautelas críticas), mas gostaria de contar (e contando transformar em homenagem) que Caetano Veloso, os Beatles e Gilberto Gil (exatamente nesta sequência) surpreenderam a mim mesmo numa fase essencial de minha vida.

Foi acasalando as minhas duas filhas pequenas (Analine e Lígia) na rede (corria o começo dos anos 1990), coadjuvado de longe pelo doce marulho das águas do Bessa madrugada adentro, e com a mamadeira nas mãos, que vinham à boca desafinada do pai as melodias e as letras das canções de Caetano, Beatles e Gil. Junto com as canções de ninar de todo mundo, eles me ajudaram a enlevar as minhas filhas.

As canções estavam no mais recanto mais sentimental de minha memória e dela saíram feito uma doação de vida. Sei que conto uma história íntima, com os riscos eventuais, mas qual maior homenagem pode-se prestar a um artista senão compor a memória sentimental de duas lindas crianças, hoje duas criaturas humanas no mundo?

Acho que Caetano, Gil e McCartney se tornaram pessoas plenas, no sentido que perseguiram o desejo até realizá-lo, perenizá-lo em obras. Servem como exemplo, embora não devam ser imitados nem muito menos servir de paradigma (cada qual que sigam o seu rumo, a bússola reluzente de seu desejo). A vida é aventura.

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