Roberto Schwarz versus Caetano Veloso

Jaldes Reis de Meneses

Acabei de ler compulsivamente, a palo seco (comprei o livro no Shopping Center ao meio dia de hoje), o novo livro de Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrécia (Cia das Letras, 2012). Vou ler as teses do livro com mais vagar e escrever um artigo mais circunstanciado a respeito – Scwharz, como Chico de Oliveira, têm por hábito escrever livros de poucas páginas, contudo nos quais cada palavra tem a medida precisa, nenhum adjetivo é desnecessário, nenhum substantivo é escolhido ao puro sabor da dança das letras. Trata-se de escritas que como os melhores vinhos demoram longo tempo temperando nos odres. Tenho compaixão dos que ainda não aprenderam a sorvê-las.

Li com avidez o ensaio inédito de Schwarz a respeito de um livro que já pode ser considerado um clássico do pensamento brasileiro, Verdade Tropical – na altura das melhores páginas de um Gilberto Freyre ou um Florestan Fernandes –, escrito por Caetano Veloso, e tratado com a reverência dedicada às grandes obras por um dos maiores críticos literários brasileiros vivos. Clássico literário Caetano Veloso, um cantor de MPB, como assim? Foi precisamente esta a impressão que eu também tive ao ler, logo quando lançado, em 1997, o livro de Caetano. Sem dúvida é um livro extraordinário, o que me faz redobrar a atenção ao texto de polêmica crítica de Schwarz.

O crítico literário paulista demorou 15 anos para amadurecer uma crítica a respeito de Verdade Tropical. Além do respeito e da evidente fascinação faustiana de Schwarz pelo personagem Caetano – sem dúvida, o baiano é um narrador macunaímico, uma espécie de Brás Cubas no qual é tomar cautelas (o que faz a graça do livro clássico de Caetano) – porém, a impressão mais forte que me ocorre na contenda de fato Schwarz versus Caetano é a de um duelo cinematográfico que foi adquirindo conteúdo épico, no estilo de Novecento (1900), o belíssimo filme de Bernardo Bertolucci, no qual dois amigos de infância (o filho do patrão e o apadrinhado), marcados pelas cicatrizes deixadas pela história de seu tempo (a primeira metade do século XX, de fascismo e comunismo), são mostrados, envelhecidos, ao final, como dois duelistas a esgrimir infinitamente as armas do passado.

O embate de Schwarz com o tropicalismo é uma tertúlia dos anos 1960/70 do século passado. Rigorosamente, data da publicação em 1970, em Paris, na Les Temps Modernes (editada por Jean Paul Sartre), do brilhante artigo do jovem crítico literário brasileiro “Cultura e política (1964-1969). Conheço em detalhe, tantas vezes lido, este artigo. A critica central que ele faz ao tropicalismo – de certa maneira reiterado hoje por Schwarz – é a de que o tropicalismo configurou uma criação artística (como falam os baianos) esperta, mas frívola: apanhava elementos dispares do fundo do baú do Brasil arcaico e os punha sob a luz branca do ultramoderno das vanguardas artísticas internacionais, bem como, em lance de oportunismo mercantil, da música pop – “não se passa do particular ao universal, mas de uma esfera a outra” (Schwarz, 1970). Travado na passagem do particular ao universal, advém o duro veredicto: o tropicalismo não faz a síntese. A especialidade do tropicalismo era o comentário de superfície de uma grande alegoria cafona (a alegoria-Brasil). É o caso de voltar atrás e verificar se a síntese foi feita ou não.

Devo observar que o comentário do crítico paulista é completamente calcado nos debates estéticos europeus de Greorg Lukács contra Bertold Brecht e Walter Benjamin, nos antagonismos entre símbolo e alegoria. Desgostando dos vislumbres de Benjamin no elogio a um recurso típico do barroco – a alegoria –, ou seja, aquilo que Aristóteles chamou de “encadeamento de metáforas” sempre em deslocamento semântico, numa operação continuamente dissimulada de disjunção entre significado (o conteúdo) e significante (a forma), Lukács propugnava, ao contrário, a necessidade da arte adequar forma e conteúdo através do símbolo. Benjamin, audacioso, rememorando a boutade de Marx em O capital sobre as “propriedades metafísicas da mercadoria” chegou a afirmar que a forma literária descritiva da mercadoria só poderia ser a alegoria – o deslocamento incessante do sentido dos valores de troca no mercado. Gosto muito de Lukács e de Benjamin – duas inteligências brilhantes até quando erram –, mas a defesa lukasciana do realismo é meio barra-pesada (disso que se trata no confronto entre alegoria e símbolo), tem sabor de prescrição, que pode resultar, involuntariamente, em inibidor da liberdade de criação. O velho Lukács, é claro, andou procurando sair das ciladas que ele próprio armou (vide as diferenças com o companheiro Mikhail Lifshitz), mas isso é outra história...

Schwarz estava falando, é claro, do ponto de partida da obra dos tropicalistas, quando sem dúvida o recurso à alegoria (recordemos as letras de Tropicália e Geléia Geral) teve destaque. No caso de Caetano Veloso, podemos dizer de hoje: o conjunto da obra extrapola (e muito) o simples recurso da alegoria. Retorna a pergunta: a síntese – a passagem do particular ao universal – foi feita no tropicalismo? No conjunto da obra de Caetano, a síntese dialética se apresentou com certeza. Quando falo em síntese, basta um emblema, entre outros possíveis: penso na gravação de Marinheiro só – esse belo samba de roda do recôncavo baiano, adaptado por Caetano a partir de um estribilho de domínio popular –, na voz aristocrática de Clementina de Jesus. Gravação de um samba de roda que já nasceu clássico, síntese dialética imersa na eternidade do tempo, nem que seja na forma da "mensagem na garrafa" cruzando o mar oceano de Adorno.

Comentários

Revistacidadesol disse…
Já eu acho que o Caetano não é lá muito bom historiador do movimento...

Abs do Lúcio Jr.
Revistacidadesol disse…
Caetano tem tudo a ver com Schwarz, só ele que não viu. Schwarz nunca fala mal da música popular como Adorno, nem elogia Schoenberg. Schwarz falou sobre João Gilberto e Caetano em O Pai de Família.Caetano é uma velha paixão dele. Ele cita Caetano em Ideias Fora do Lugar, em Sequências Brasileiras e agora fez todo um ensaio.

Ele não tem essa mesma simpatia pelo Zé Celso e Glauber.

Att Lúcio Jr

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