Tempos de lulismo

 

Jaldes Reis de Meneses

Havia uma dúvida entre os intelectuais e pesquisadores que se ocupam em estudar a política brasileira: as eleições municipais de 2012 seriam de exaustão ou continuidade do lulismo? O ciclo histórico aberto com as eleições nacionais de 2006, nas quais Lula derrotou o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, em segundo turno, com mais votos que no primeiro, mas principalmente arrebanhou a maioria dos votos dos pobres das periferias e dos grotões, teria se esgotado?

Antes de responder a questão, explico-me porque contabilizo 2006 em vez de 2002 (ano da primeira eleição de Lula), coonestando, aliás, com a periodização esposada pelo cientista político André Singer (USP) no livro “Os sentidos do lulismo” (Cia das Letras, 2006), cuja data-síntese de 2006 incorporo, embora discorde de outros de seus argumentos (em breve, escreverei a respeito): naquele ano, o grosso do eleitorado lulista se concentrava nas classes médias e nos grandes centros urbanos, ao passo que os pobres preferiam votar nos candidatos do DEM e PSDB.

A geografia do voto virou em 2006, quem sabe até quando? A deduzir os resultados do primeiro turno, o PT obteve mais de 17 milhões de votos, sendo o mais votado dos partidos, além da eclética coligação governista cobrir 2/3 do total das prefeituras conquistadas, portanto, o ciclo histórico do lulismo segue adiante. Mais ainda quando as projeções indicam que hoje (28/10) a jóia da coroa (São Paulo), deve ir mesmo para o noviço Fernando Haddad, derrotando o arquiinimigo José Serra.

A égide da hegemonia do lulismo já compõe um ciclo bastante duradouro da política brasileira. Os mandatos presidenciais de Lula e Dilma somarão 12 anos, com a possibilidade de se estender por 16, mais tempo que o primeiro ciclo varguista (1930/45), embora ainda ligeiramente inferior aos anos de regime militar (1964/85) – mais para o mal que o bem, as experiências históricas brasileiras mais marcantes do século XX.
Lulismo e PT não são fenômenos idênticos. Comparo o espectro do lulismo a uma manta cobrindo o corpo do sistema político brasileiro, excetuando uma pequena margem dissidente à esquerda (PSOL e PSTU) – que obtiveram um módico crescimento nas eleições municipais – e um centro conservador (PSDB, DEM e PPS). O lulismo se aparenta a duas experiências populistas, o peronismo e o varguismo. Mas também é bem diferente dessas experiências históricas.

A propósito do conteúdo teórico e político do lulismo, cabe um parêntesis: acho espatafúrdias as comparacões do governo Lula, bem como do lulismo, ao totalitarismo (russo, nazista, chinês, cubano, chavista, etc.). Dou como exemplo os seguidos artigos a respeito do mensalão publicados na grande imprensa (Estadão, O Globo) pelo sociólogo paulista Demétrio Magnoli (aliás, um antigo fundador do PT e liderança estudantil da tendência Liberdade e Luta nos anos 1980, neste caso percorrendo um caminho semelhante a das lideranças trotskistas norte-americanas dos anos 1940, feito Max Shachtman e James Burnham, que foram da IV Internacional até a colaboração com o Departamento de Estado Americano).

A questão central do totalitarismo nem remotamente reside simplesmente na montagem de uma máquina de captação de dinheiro e compra de votos parlamentares (por esse critério, o DEM e o PSDB também teriam DNA totalitário), mas de política de massas, ideologia e – principalmente - na montagem de um aparelho policial, militar e de espionagem descentralizado de cima para baixo, nos termos da SS nazista ou da KGB stalinista. Os esquemas de mensalão brasileiro (PT, PSDB, DEM, etc.), salvo prova em contrário, ocorreram em uma sociedade pluralista e em um Estado Democrático de Direito formalmente liberal. Têm mais a ver com o encontro das duas corrupções estruturais brasileiras – a antiga patrimonialista e a recente neoliberal – do que com ameaça totalitária.

Na Argentina, o peronismo criou um partido que é o cobertor completo– as diversas correntes são internas ao partido. A União Cívica Radical (UCR), o secular partido radical das classes médias, hoje aos pedaços, jamais conseguiu de fato, conquanto o esforço, ser uma alternativa socialmennte densa ao aparato reformista do peronismo, o que explica muito da frequente emersão de uma divina violência sem peias (Walter Benjamin) na trágica história da Argentina contemporânea, desde o bizarro culto fúnebre ao corpo de Evita até os massacres mútuos das falanges peronistas de direita e esquerda no Aeroporto de Ezeiza (http://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Ezeiza). No lulismo, ao inverso, as principais correntes econômicas e politicas antagônicas, embora coligadas, são externas ao PT, que, animal camaleônico, se adapta a elas. Para ilustrar a minha digressão, conto uma anedota popular na Argentina: um observador estrangeiro aportou em Buenos Aires e conversou em dias seguidos com um cristão conservador e um comunista independente (ou um marxista não filiado ao partido comunista). Eram dois mundos antagônicos, abismos separados pelas respectivas concepções de mundo. Quando o observador pronunciou a palavra Péron, surpreendeu-se – ambos, o conservador e o comunista, eram sincreticamente peronistas.

Em comparação ao varquismo, o reformismo do lulismo é de baixa intensidade, embora não seja um devaneio absoluto a suposição de que, no futuro, e em torno dos conflitos distributivos da sociedade brasileira – que tendem a se acentuar com o movimento de ascensão social de novas classes trabalhadoras –, possam daí surgir correntes radicalizadas. Novamente, apego-me à Argentina: afinal os Montoneros nada mais foram que uma curiosa simbiose, como só os latinos são capazes de fazer, de populismo e guevarismo. Em conjunturas diferentes, de crise em vez de estabilidade, podem ressurgir correntes radicais, principalmente no PT. O velho caudilho gaúcho criou prussianamente as principais instituições do moderno Estado brasileiro, que até hoje estão aí. Lula não pretende criar instituições estatais novas – quebrar os ovos para fazer a omelete, nem pensar –, mas somente ocupá-las e nelas macunaimicamente reproduzir-se. Melhor ser Macunaíma (o politransitivo herói sem caráter) que Abelardo I, o Rei da Vela (a previsível, pois dá muito na vista, burguesia nacional), como sabe os que conhecem os escritos de Mário e Oswald de Andrade. Alô, alô, Mr. Jones.

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