Tempos de Marighella

Jaldes Reis de Meneses

Novembro tem sido o mês de Carlos Marighella (lançamento de biografia, filme documentário e anistiado oficialmente pela Comissão da Verdade). Com efeito, “o guerrilheiro que incendiou o mundo”, na forma do subtítulo da densa e intensa biografia escrita por Mário Magalhães (ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, que largou o emprego para se dedicar por nove anos à pesquisa recém lançada em livro), caso estivesse vivo seria um senhor idoso de 101 anos de idade completados também novembro. Devaneio meu, pois é de domínio público que Marighella, cabra mais do que marcado para morrer, proclamado oficialmente o “inimigo público número um” pelos militares, só seria um sobrevivente se existisse milagres na terra em que Deus nasceu, mas foi abandona por ele à própria sorte.

À minha coleção de biografias preferidas, o Jesus e Paulo de Ernest Renan, o Napoleão de Stendhal e o Trotsky de Isaac Deutscher, venho a acrescentar o livro de Mário Magalhães (Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, Cia das Letras, 2012). Trata-se de cerradas 732 páginas que se lê de um fôlego único como um romance de suspense. Grandes biografias devem ser lidas como processo de transferência mediúnica, como num passe de centro espírita ou de candomblé. O principal segredo da grande biografia é o biógrafo encontrar um grande personagem, visando provocar no leitor, através da imersão na leitura, um processo compulsivo de identificação. Advém daí o que estou denominando, a falta de um melhor termo, de duplicação de cumplicidades: projeta-se no processo de leitura, em menor grau, a mesma obsessão que perseguiu o escritor. A biografia deve ser considerada um estilo situado no cruzamento entre a literatura e a história, recordando a lição do historiador francês, meu querido e insuperável Jules Michelet (1798-1874) - quando se trata de viver a vida alheia -, através do qual se dá alma aos defuntos. As formas literárias do romance e da biografia foram consideradas superadas nos anos sessenta pelos estruturalistas pela emergência na modernidade, recordando a fórmula de Michel Foucault, de um tipo de discurso (o autor nomeia explicitamente Marx e Freud) impessoal (sintoma da própria impossibilidade da autonomia do sujeito nas sociedades contemporâneas), que tornou possível a possibilidade infinita de produzir outros discursos (“teoria”) a partir de uma matriz maquinal geradora – “o marxismo”, o “freudismo”, etc.

A voga da biografia, nos dias de hoje, desmente as prédicas fantasiosas de desaparecimento das individualizações estéticas (o romance e a biografia), pois a “transferência” repõe exatamente o discurso do indivíduo singular, mas histórico, dotado de autonomia, mas também confrontado com as circunstâncias férreas da tragédia (mais tarde, este tema retornará). Às vezes metralhadora giratória em pensamento, recordei de tudo isso na leitura do livro – reflexões que podem parecer maçantes a pessoas planas –, já a partir da leitura das duas epígrafes escolhidas por Magalhães, que achei cirurgicamente bem escolhidas a uma biografia – “não esqueçamos jamais que as ideias são menos interessantes do que os seres humanos que as inventam, modificam, aperfeiçoam ou traem” (François Truffaut) –, mas especialmente de Marighella no verso de Goethe na segunda epigrafe – “ao princípio era a Ação”.

Conhecedor anterior da história tanto por relato oral como escrito, contive-me em não começar a leitura do livro pelas páginas finais, de reconstituição da emboscada do DOPS que matou Marighella na fria noite paulista de 4 de novembro de 1969, até hoje uma polêmica não resolvida de versões entre o historiador Jacob Gorender (Combate nas Trevas, 1987) e o escritor Frei Betto (Batismo de Sangue, 1983). Sem citar diretamente nenhum dos dois (prurido que sinceramente não entendi), Magalhães dá-nos a versão definitiva do episódio. Em trabalho minucioso de detetive, reconstrói passo a passo as horas finais de Marighella. Magalhães convence na elucidação da verdade factual de que Marighella não sabia que os frades dominicanos haviam caído nas malhas da repressão. A versão de Gorender é que Marighella foi avisado da iminência dos algozes antes de partir ao encontro dos clérigos, não obstante seja difícil explicar que um dirigente revolucionário tarimbado tivesse impulsos suicidas, o que está fora de cogitação. Nem houve participação direta da CIA e do governo americano no episódio (versão de Frei Betto), embora evidentemente Marighella soubesse por intuição que o cerco da repressão estava próximo a armar o bote final. A CIA infiltrou um agente na ALN (Alessandro Malavasi), contudo ele não tinha notícia do aparelho dos dominicanos. No fundo, a versão de Frei Betto em reduzir o peso da confissão sob tortura dos clérigos (afinal, de qualquer forma, a CIA já havia informado a ditadura...), infelizmente, é interesseira: o nosso conhecido frade procura livrar a responsabilidade dos dominicanos, na atitude demasiadamente humana de que cederam à tortura. Alguém se ariscaria a jogar a primeira pedra?

Sei que é um tema melindroso, mas enfim a culpa foi da ditadura, não dos religiosos, de maneira que Frei Betto não tem do quê justificar os membros de sua ordem religiosa. Fui educado pelos moralistas do comunismo, em lições Diógenes Arruda Câmara (comunista histórico brasileiro) e Álvaro Cunhal (secretário-geral do Partido Comunista Português no período da ditadura de Salazar) – literatura hoje esquecida –, nos quais se afirmava que se deveria resistir estoicamente ao inimigo em nome da causa maior. Muitos resistiram até morrer no pau-de-arara, morreram sem abrir o bico, feito Virgilio Gomes da Silva, o Jonas (comandante da ALN, o grupo armado de Marighela), suportou sevícias inomináveis, a exemplo da introjeção de um fio de arame no pênis do prisioneiro, visando conduzir corrente elétrica em um corpo tombado. Concordo com a fórmula esboçada por Mário Magalhães, também fonte do auto-engano de Marighella até o cadafalso na noite fria paulista: a questão dos limites diz menos respeito à iminência da morte do que ao grau de suportabilidade do físico e da alma de cada um de nós. No fundo, Marighella pensava em super-homens (existem os super-homens, como Jonas) e não em militantes de carne e osso.

Belo sedutor (que mereceu elogios de Sartre pela “forma direta” de seus textos), para mim contraditoriamente Marighela foi um grande herói equivocado que merece admiração e contemplação por ter lutado de peito aberto contra a ditadura, mas não serve de exemplo a ser seguido. Não picharia seu nome em praça pública, embora lute até o mais profundo de minhas convicções para sua memória seja depurada de todas as calúnias e infâmias que lhe foram assacadas pela escoria humana dos aparados de repressão e comunicação que infelicitaram o Brasil por longos vinte anos.

O motivo de minha posição adversativa não é o de Marighella ter pregado a luta armada, pois Thomas Jeferson na Filadélfia e Fidel Castro em Sierra Maestra também pregaram e tiveram êxito, mas de tê-lo feito de maneira errada, eivada de ranços anarquistas e voluntaristas. A forma de organização proposta por Marighella em substituição à forma-partido, um aglomerado horizontalizado e descentralizado de guerrilheiros, no fundo, é falsa, objetivamente se transformou em direção de apenas dois – o próprio Marighela e Joaquim Câmara Ferreira, o segundo violino, as cabeças sobre as quais recaiam o conhecimento e todas as responsabilidades de direção política da organização. Nada disso poderia dar certo.

Na luta interna de Marighella contra Prestes, que pegou fogo em meados dos anos sessenta (VI Congresso do PCB, 1966), apesar de tudo e todos os equívocos do PCB pré-1964, formaria sem pejo entre aqueles que ficariam do lado de Prestes (na leitura de uma biografia, como em uma novela, podemos escolher os lados, qual o problema?), que disseram que vitória da luta contra a ditadura, como aconteceu, viria de um longo processo social de acumulação de forças. Ora, se a ditadura era militar, não seria no terreno das armas que ela seria derrotada, mas no da sociedade civil. Pafraseando o outro Carlos, o Drummond, diria, dorme em paz, Carlos, você que foi todo ação, mas nem por isso esteve longe de também ser “gauche” na vida.

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