Caetano Veloso

 

Jaldes Reis de Meneses

 

Acabei de escutar o mais recente CD de Caetano Veloso (Abraçaço), à venda a partir desta primeira semana do mês de natal em todas as livrarias de rede brasileiras (CD não pirateado virou artigo de luxo em livrarias). Devo continuar a escutá-lo pelo mês de dezembro afora, principalmente quando entro no carro rumo ao trabalho ou a algum compromisso, me apropriando do conteúdo, harmonias, melodias e letras. Conheço em detalhe a obra de Caetano inteira, desde o frescor de “Domingo”, gravado com Gal Costa em 1966, o primeiro e por incrível que pareça um dos discos que mais escuto, até a fase sintetizadora e eletrônica de “Velô”. Adoro “Transa”, um dos discos que mais escutei em minha vida, neste 2012 completando – parece que foi ontem – 40 anos.

Tenho uma dívida de afeto para com Caetano Veloso, devo confessá-la: quando nasceu minha primeira filha, Analine, as canções de ninar que me vinham à memória na nossa rede nordestina, ouvindo rente o mar do Bessa, junto com o cravo brigou com a rosa e atirei o pau no gato, eram as de Caetano, de “Lua de São Jorge” a “Enquanto seu lobo não vem”. Passei a perceber que as canções de Caetano, o que não sabia conscientemente, eu que admiro Bach e Debussy – meus compositores favoritos –, dormiam em meu inconsciente, prestes a serem despertadas ao estímulo do despertar o sono (o paradoxo é proposital) de minha filhinha amada. No fundo, Caetano quer mais dizer à minha experiência de vida do que Bach ou Debussy, talvez, vou levantar uma tese ousada, porque eu seja brasileiro, paraibano, pessoense e nascido em Jaguaribe, e não em Paris ou Bonn, numa época em que o tropicalismo, antes da experiência partidária e em movimentos estudantis, fez parte de minha iniciação à juventude. Sou mediterrâneo solar como Debussy e racionalista dialético como Bach (o contraponto!), mas a cultura erudita me chegou (e aos da minha geração) pela cultura de massas. Resultado: gosto de Bach da mesma maneira que leio história em quadrinhos. Aprendi a estudar em frente a uma câmara de televisão, até hoje escrevo com a TV ligada (sem som) e o controle remoto a postos.

Fiz um artigo recente a respeito de Carlos Marighellla, guerrilheiro comunista, morto numa emboscada pela ditadura militar. Não sabia que o novo CD de Caetano continha uma canção, chamada “Um comunista”, também narrando a vida de Marighella. Estranha ou não tão estranha coincidência. Quem me alertou em e-mail que Caetano havia feito uma canção sobre Marighella – “Um comunista” - foi meu amigo Sílvio Osias, também amigo de Caetano (Abraçaços). Começo a desconfiar que nada disso seja exatamente coincidência. A beleza da obra de Caetano Veloso são as antenas para o mundo inerentes à sua criação, de alguma maneira a sua intuição, auxiliada pela cultura invejável, detectam os rumores do espírito do tempo. Caetano meio que antecipa mediunicamente o Brasil há uns trinta anos. Vai ver por isso, ele votou e fez a campanha de Marcelo Freixo, do PSOL, na Prefeitura do Rio de Janeiro, o candidato que realizou o feito de conquistar tinta por cento dos votos com três minutos de tempo de televisão, apostando na mobilização das pessoas e para mim reeditando uma campanha ao estilo de Ruy Barbosa na república velha.

Caetano é um comunista embora não o seja, e seu pai, Zeca (pelo que deduzo dos depoimentos de Caetano um pai brasileiro anônimo sábio e maravilhoso, como devem ser os nossos pais), o tenha sido. O tema da memória comunista vai começar a reaparecer no Brasil, de começo em estudos acadêmicos e depois em interveniência direta política. 

Para entender a nossa democracia (historicamente restrita), até 1985 o Partido Comunista não era legalizado no Brasil. O tema do comunismo, definitivamente, depois da guerra fria - conjuntura de Marighella narrada no lamento em forma de canção de protesto de Caetano –, passou a compor o arcabouço de novas e inusitadas embocaduras. Em filosofia, pouco antes o comunismo de Caetano já havia se revelado nas ideias desconstrucionistas de Jacques Derrida (Espectros de Marx, Relume Dumará, 1994) e no comunismo platônico de Alain Badiou (A hipótese comunista, Boitempo, 2012).

Para mim, posições reflexivas e nostálgicas (portanto, na sociabilidade de hoje, platônicas) da ideia do comunismo brotarão no futuro do capitalismo às mil flores. Sem dúvida, a ideia (ou um espectro) do comunismo acompanha a história do mundo desde Platão. Contudo, na apreciação do legado de Marighella, meu mano Caetano consegue, através da arte, extrapolar a vertente do comunismo platônico. Nos dias de hoje, Badiou e Slavoj Zizek, comunistas platônicos, já podem ser considerados autores de uma vertente política atuante e influente, na moda. Ao reverso dos dois, porém, Caetano realiza uma operação de distanciamento e aproximação, na qual ao mesmo tempo em que se cultua o herói se pode criticar sem complacência as opções. Não existe experiência concreta que dizimará da face do planeta a ideia de comunismo. A ideia de comunismo é granítica, seja como mito, ideologia ou experiência. Mas somente o platonismo da ideia não basta à realização societária da coisa. O gume da crítica – inclusive da experiência do comunismo – é indispensável.

O novo CD renderia muito assuntos. Fico por aqui, por enquanto. Mas não encerro sem deixar de me remeter à letra da faixa que abre o CD, “A bossa nova é foda” (gosto desse grito gutural, vindo do fundo da garganta, adolescente). A bossa nova, a potência miscigenada brasileira, é foda prá valer, a exemplo de Neymar, Minotauro e Anderson Silva! Bela homenagem a João Gilberto, que dedilhou no violão a batida da bossa nova às margens do Rio São Francisco, refugiado na casa dos pais por uns tempos da vida boêmia do Rio de Janeiro. O João precisava dos ventos do Rio São Francisco e da paisagem acre e seca do sertão para incluir o Brasil na história da música internacional, de um golpe (a batida de samba do violão!) da mesma maneira que Anderson Silva reinventou a luta livre. Caetano, João Gilberto, Anderson Silva e Marighella, grandes brasileiros! Este é um país que vai prá frente.

 

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