Nelson Rodrigues

Jaldes Reis de Meneses

Tenho certa vergonha e até pudor em escrever a respeito de temas ao redor dos quais se formou um consenso social de gosto, principalmente os de arte e literatura. Os consensos intelectuais são os mais alienados. Vivemos tempos de leitura – e também de escrita – automática, mais parece valer o “efeito manada” típico dos mercados financeiros, no qual o nosso gosto se adapta às correntes de opinião. Todo o mundo ama Guimarães Rosa e Clarice Lispector – nem precisa fazer a viagem de imersão da leitura –, autores imbatíveis na seleta de sentenças exemplares, que circulam aureolados por gravurazinhas de estilo duvidoso (e fundo musical meloso) nas redes sociais a pedir o toque automático no infame “curtir” (simpática expressão dos anos setenta recuperado pelo tradutor de português do facebook). O escrito se transforma, por um passe de mágica, na melhor das hipóteses, em um moralista, ou na pior, em um vendedor de drops de autoajuda. Tudo isso é muito bonitinho e ordinário.

Por isso, tenho dificuldade de falar em Nelson Rodrigues, sua obra repetitiva e desigual, obsedada e católica, puritana e despudorada, moral e imoral, de “anjo pornográfico”, na precisa síntese de Ruy Castro. Corre-se o risco de cair no lugar comum, mesmo o da crítica literária mais qualificada, que depois de muito tempo de conflito de opiniões terminou por conferir a Nelson o estatuto de gênio literário. Tenho motivos, por exemplo, para não gostar dos microcontros de “A vida como ela é...” (Nova Fronteira, 2008). Verdade que ali estão presentes os mesmos motivos da parte genial da obra do autor, a presença comum da inocência fingida e da morte formando um par, contudo o resultado final da leitura é frívolo. Creio saber do motivo. Nos trabalhos de encomenda de “A vida como ela é...”, originalmente uma coluna diária no jornal “Última Hora”, o narrador assume um tom impessoal, antimemorialístico. Resultado: a dramaticidade é frívola.

O ouro na obra de Nelson Rodrigues são as memórias, a visada freudiana e proustiana, com o agravante que o poço do inconsciente nunca chega a negar (denega) nem a valorizar eticamente (é simplesmente sintoma). Apenas trás à tona. Em suma, mais que um escritor, Nelson Rodrigues foi um personagem destrinchado por sua própria memória. Pode-se perguntar pelas peças de teatro – de longe o ponto alto da obra de Nelson, menos “Vestido de noiva” e mais “Álbum de família” –, mas parece-me que a resposta é relativamente simples: na ação dramatúrgica, diferentemente dos microcontos, a ação é efetuada por meio dos próprios personagens. Essas reflexões me assaltaram a mente hoje ao terminar a leitura do livro memorialístico “A menina sem estrela” (Companhia das Letras, 1997), reunião de todas as crônicas publicadas na seção “Memórias” no desaparecido jornal Correio da Manhã. Sem dúvida, concordo com Oto Lara Resende: o capítulo 10 de “A menina sem estrela” é uma das mais importantes páginas da literatura em língua portuguesa.

Como Nelson é repetitivo, – crônica vira memória e memória vira crônica –, a narrativa de “A menina sem estrela” comparece em outro livro do autor com pretensões de intervenção no momento político – “O reacionário” (Agir, 2010). Evidentemente, “A menina sem estrela” está deslocada em “O reacionário”. A imersão correta no texto, necessariamente, deve acontecer em seu devido lugar, as memórias do autor.

Resumo o argumento da obra prima. A filha do segundo casamento de Nelson Rodrigues, Daniela, nasceu cega. Aos seis anos de idade, quando criança, Nelson viu na porta de sua casa alguns cegos portugueses cantando e pedindo esmolas. A imagem nunca lhe abandonou, a partir daí ele imaginou que um dia findaria cego, de certa maneira uma forma de morrer. Não ficou cego, mas o sortilégio da vida lhe presenteara com uma filha cega.

Numa página anterior do livro, a guisa de lhe fazer uma dura crítica pessoal, arguindo a frivolidade do poeta mineiro, Nelson cita o poema “Caso do Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, uma unanimidade da moderna poesia brasileira. Suspeito que a associação não aconteça à toa. Drummond teria sido demasiado frívolo ao citar na frase final de uma crônica de jornal, a morte do irmão de Nelson, Roberto, falecido tragicamente na voragem de um desabamento nas chuvas de abril de 1967, em Laranjeiras. A pedra desceu do morro, deixou a paisagem e aberrentou a casa e o corpo de Roberto Rodrigues. Nelson invoca a admiração e a amizade: jamais o poeta poderia mencionar a tragédia de Roberto numa simples frase, ainda mais que o irmão amava tanto o poeta. Não teria havido recíproca no amor.

Quando há muito tempo li outra versão d’“A menina sem estrela”, em passagem de “O reacionário”, na forma de crônica de jornal, logo me recordei do ritmo de o “Caso do Vestido”. Coisa estranha que o mesmo poema venha citado poucas páginas antes no livro de memórias. Aquela sensação em crescendo do “pai subindo a escada” (dando a impressão de uma ameaça a encerrar a conversa da mãe com as filhas) do poema se parece demais com o crescendo trágico do capítulo de Nelson. Talvez seja coincidência. Ou melhor, suspeito, por motivo da citação precisamente do poema de Drummond poucas páginas antes do livro de memórias, que tenha ficado gravado a ferro no inconsciente de Nelson Rodrigues (na escridura, diriam os estruturalistas), como ficou no meu inconsciente para sempre o ritmo interno de “O caso do vestido”. Como a obra de arte é aberta, nem precisa que o meu encadeamento seja o mesmo de autor.

Se não for intencional, paciência, fica a marca do signo “caso do vestido” a significar aos que lêem estabelecendo relações. Escritor dotado de imenso domínio nas técnicas da narrativa, onde eu vislumbro influência, na intenção de Nelson seja somente coincidência. Pouco importa. A literatura tem para o leitor a liberdade das associações aleatórias, mas criativas, o que só se percebe pela leitura comedida e interna de uma obra, em vez de apenas adquirir conhecimento pela citação e propagação de frases feitas.

Este é o meu último escrito de 2012. Tenham todos os leitores uma bela entrada ano de 2013!

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