Oscar Niemeyer (1907-2012)

Céu de Brasí­lia/Traço do arquiteto/Gosto tanto dela assim
Djavan/Caetano Veloso, Linha do Equador  

Jaldes Meneses
Com o falecimento de Oscar Niemeyer o Brasil do século XX definitivamente é passado. Toda a geração de fundadores do Brasil moderno, enfim, já não se encontra em carne viva entre nós. Resta-nos apreciar a obra imorredoura e cultuar a memória.

Minha primeira lembrança forte de Niemeyer não vem da arquitetura, mas do personagem Marcos, o arquiteto comunista do romance “Subterrâneos da liberdade”, de Jorge Amado. Jovem adversário do regime de Estado Novo, Marcos, alter-ego de Oscar, participava do combate clandestino à ditadura de Vargas, protegendo no abrigo de seu escritório amigos comunistas perseguidos pela polícia política. O retrato de Marcos pintado por Amado é a de um companheiro de viagem oriundo do mundo e dos hábitos burgueses, mas carregado de sentimento de solidariedade e justiça.

Por outro lado, o arquiteto de vida legal e profissional ascendente merecia a confiança da vertente renovadora regime. Niemeyer participou de projetos estéticos ousados no Estado Novo, como o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro (o Palácio Capanema), compondo a equipe do urbanista Lúcio Costa e sob a consultoria Le Corbusier. A genialidade logo detectada lhe rendeu o vôo solo, na formulação do projeto do Parque da Pampulha em Belo Horizonte, do jovem prefeito Juscelino Kubitschek, um político promissor que começou como interventor servindo à Vargas. Quando o PCB voltou à luz do dia, em 1945, Oscar (Marcos) assinou a ficha de filiação ao partido. Embora, jamais tenha sido um dirigente partidário, uma liderança de aparelho, divulgou até morrer a causa do comunismo.

Apesar da ditadura do Estado Novo - que não foi fascista, mas um bonapartismo militarizado sob as ordens de Vargas -, havia um complexo e contraditório espaço de colaboração entre os intelectuais e o regime. O tema foi explorado originalmente nos escritos do sociólogo Sérgio Miceli, dando conta das colaborações (que não significavam colaboracionismo, mas uma categoria mais complexa) de um Graciliano Ramos (ex-preso político) até, por exemplo, Candido Portinari (notório militante comunista). A colaboração dos intelectuais tinha raízes históricas, mas também estruturais. É bom perceber que a partir de 1942 (com a adesão do Brasil aos aliados, especialmente os Estados Unidos) abriu-se um período de colaboração interna de todos os setores contrários ao nazifascismo. Mesmo na prisão e vivendo um processo de luta interna, a disposição para a colaboração contagiou a maioria dos comunistas, conforme se pode ler na vasta bibliografia a respeito.

Porém, devem ser levados em consideração os motivos, digamos, estruturantes na sociedade. O crítico literário Antonio Candido (94 anos), último companheiro de sobrevida da geração de Niemeyer, cunhou uma expressão interessante para descrever os laivos colaboracionistas dos intelectuais progressistas de sua geração – o “balancê”. As estruturas da modernidade brasileira, em uma sociedade rural e atrasada, de classes sociais urbanas pouco desenvolvidas e superexploradas estavam sendo criadas pelo Estado. Nos termos de Gramsci, as classes brasileiras ainda não desenvolveram seus intelectuais orgânicos. Por isso, os intelectuais do modernismo sempre se viram na iminência de colaborar com o Estado ou sucumbir à irrelevância. À esquerda ou à direita, os intelectuais vão girando por sobre as frágeis estruturas de classes, por dentro do Estado.

O caso mais clássico do “balancê” dos intelectuais é precisamente o fornecido pela arquitetura de vanguarda (uma escola que gerou seus dissidentes, o mais importantes deles, Sérgio Ferro), inteiramente dependente, nos tempos heróicos da formação do capitalismo brasileiro, das encomendas públicas (em alguns casos, a convivência com o Estado se apaziguava sob a forma do concurso público de cartas marcadas). Qual o significado de Brasília, a cidade monumental de Niemeyer, senão a maior encomenda pública do Estado brasileiro já feito a um artista?

A arquitetura de Niemeyer tem a culminância do romance de Guimarães Rosa ou a poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, as três maiores criações da moderna literatura brasileira. Nela repousa um paradoxo: embora o projeto de Niemeyer pretenda tornar belas as formas do concreto, são monumentos racionalizados, uma mistura de planejamento e utopia que parecem não terem sido feitos para o homem habitar, mas admirar, com já foi notado por muita gente, a exemplo da poeta norte-americana (lacerdista de carteirinha, no tempo em que residiu no Brasil) Elizabeth Bishop. A suspicácia da poeta confundiu a habitabilidade utópica de novas formas de vida - a bela promessa da moderna arquitetura brasileira - com o decadente conforto burguês.

Comunista e admirador de Stálin que jamais se engajou no realismo socialista (disse diretamente aos soviéticos que a arquitetura deles era péssima), reproduziu em outro registro estético, este hedonista e libertário, o maquinismo da sociedade industrial. Separo o que aconteceu aos monumentos de Niemeyer espalhados pelo mundo (admiráveis aos olhos do turista aprendiz) do caso vivo de Brasília, a exceção da regra. Explico-me. A racionalidade utópica e burocrática do Plano Piloto de Brasília (produto da parceira com Lúcio Costa e o esquecido poeta-calculista Joaquim Cardoso) foi sendo domada por seus habitantes aos poucos e em pedaços, da periferia para o centro. Parafraseando Clarice Lispector, quando foi criada, em Brasília não havia ainda o “homem de Brasília”. Mas ele surgiu na primeira geração autóctone do planalto central, no encalço das redes espontâneas que toda cidade viva cria. O “rock Brasília” (Legião Urbana e Paralamas do Sucesso, Renato Russo e Herbert Vianna, entre muitos) pode ser livremente interpretado como a luta para humanizar a modernidade utópica de Brasília. Não há pedra dura que não amoleça.

Felizmente ou infelizmente, passou a moda da arquitetura de Niemeyer, que doravante passou a se confrontar contra a parede da dinâmica urbanista do futuro, mais caótica e, à falta de uma melhor expressão, pós-moderna. É como se arquitetura de Niemeyer fosse movida a fundo público e a pós-moderna ao movimento do capital. O projeto utópico e racionalista de Niemeyer, com o passar do tempo, transformou-se mais em pretérito que futuro. Ele morre deixando saudades do futuro que não tivemos.

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