Representação política e federalismo sem projeto

Jaldes Meneses

Artigo publicado, em versão reduzida, na edição do Jornal da Paraíba, 06/01/2013, como também no Portal WSCOM.

Afora a aprovação do orçamento anual, mais um dos problemas políticos adiados no congresso em 2012 foi o da distribuição dos royalties do petróleo entre os Estados. Quem quer que vença a votação, sejam o Rio de Janeiro ou Espírito Santo (os Estados vizinhos da plataforma marítima do pré-sal) ou, mais provavelmente, os demais Estados, há somente uma certeza: o litígio, tipicamente federativo, terminará nas barras do Supremo Tribunal Federal, a exemplo de todas as mais relevantes decisões brasileiras dos últimos anos (aborto de anecéfalos, células tronco, demarcação das terras indígenas, união civil homoafetiva, fidelidade partidária cotas sociais e raciais e o que mais vier). Verdade que a lei da “ficha limpa” foi aprovada no congresso, mais aí não vale como argumento, pois todos sabem que a lei foi de iniciativa popular.

Até o executivo federal, pusilâmine, aparentemente, em geral, tão cioso de poderes, no caso concreto da partilha dos lucros do pré-sal, abriu mão de arbitrar durante todo o processo de tramitação da lei, instaurando a novidade de uma espécie de federalismo Pilatos (lavar as mãos). De afogadilho e já de autoridade abalada (logo ela, tão ciosa), a presidente Dilma vetou os artigos da lei que beneficiavam a maioria dos Estados.

Por outro lado, quando viu as bancadas regionais do norte, nordeste, sul e centro-oeste (mais Minas Gerais) não voltariam atrás, mesmo a reboque, Dilma piscou para a maioria: afirmou que caso o congresso derrube os vetos, de sua parte não resta mais nada a fazer. Dois olhos, duas piscadas distintas. Ou seja, embora o governo Dilma se caracterize, no cotidiano das ações, mais pela reiteração da tradição do velho centralismo do Estado republicano brasileiro, quando se apresentou uma questão central, reagiu através de uma preocupante inação quanto à tarefa de arbitrar e decidir, emitindo propositalmente sinais contraditórios, que só aumentaram a confusão.

De tudo, resta a certeza. Cedo ou tarde, o Brasil mergulhará em uma crise federativa. Nada que abale a unidade nacional deste grande e maravilhoso país, mas certamente começou-se a criar um estimulante adicional aos rumos da economia, relativo às crises do futuro, próximo ou nem tão distante. Explico-me: em meu esquema de interpretação da conjuntura brasileira, tendia a subestimar a questão federativa. Porém, os novos fatos são por demais gritantes: não somente os rumos da economia podem fraturar a base política do governo, também o problema federativo é dotado de poder de combustão.

Tem sido muito comentado o litígio dos royalties do petróleo. No entanto, mais três tensões do pacto federativo brasileiro são combustíveis de crise: 1) a “guerra fiscal” de desonerações do ICMS da parte das unidades da federação; 2) a renegociação das dívidas dos Estados e municípios (litígio menos combustível e quase resolvido pela proposta de redução dos indexadores, até porque a principal unidade devedora é o município de São Paulo, administrado por F. Haddad); 3) a redistribuição dos recursos do FPE. Doravante, me deterei na questão do FPE, deixando para outra ocasião a guerra fiscal e as dívidas dos Estados e municípios.

Em 2012, o STF considerou ilegal o critério de partilha do FPE (Fundo de Participação dos Estados), instando o congresso a votar novos critérios, equitativos, de distribuição do fundo. Resultado: para variar, o congresso deixou perder o prazo. Trata-se de uma receita de R$ 55 bilhões e principal fonte de sobrevivência dos Estados mais pobres. Os Estados da federação, principalmente os que mais dependem da cotas do PFE, são extremamente frágeis, penduricalhos da federação. Para se aquilatar, em 1965, quando Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, ministros da ditadura, criaram o FPE, os Estados detinham 35% da receita tributária. Atualmente, mal chegam a 25%, enquanto a união, que detinha 55%, elevou-se a 55%, afora as receitas das contribuições e outros fundos públicos. A novidade é que os municípios cresceram na distribuição da receita, passou de 10% em 65 para 18%.

A razão da ampliação do poder dos municípios, em detrimento da redução da força dos Estados e não do executivo central é simples: depois da constituição de 1988, a operatividade terminal das políticas sociais, principalmente SUS (Saúde) e SUAS (Assistência Social), passa pelos municípios, aos quais, corretamente, são atribuídas as tarefas de atendimento de ponta aos usuários. Tudo bem, não fosse o fato aos Estados cabem as tarefas não somente de supervisão do sistema, mas as de alta e média complexidade, mesmo com a redução relativa de verbas.

Fomos bombardeados recentemente com o noticiário terrorista do “abismo fiscal” americano, ao passo que ninguém comenta o “abismo fiscal” vegetativo brasileiro. Lá nos Estados Unidos, o parlamento, bem ou mal, entrou em acordo nos estertores do prazo fatal. Para mim, é sinal de que o federalismo e a representação parlamentar americana funcionam, enquanto no Brasil, a falta de decisão do congresso é consequência de nosso federalismo sem projeto. O congresso americano respira o conflito político de uma sociedade hoje dividida. Mas é precisamente esta a tarefa dos parlamentos: mediar as clivagens da sociedade. No caso do parlamento brasileiro, incapaz de mediar o conflito federativo, corre-se às barras do judiciário.

Fala-se insistentemente em “judicialização” da política. Contudo ela não ocorre no vazio. Depois da constituição de 1988, consolidou-se no Brasil o chamado “presidencialismo de coalizão”, uma forma política que transformou os deputados federais e senadores em medíocres despachantes de escassos recursos pulverizados, ou seja, das sobras da parte do leão do orçamento.

O hiperativismo do Supremo (realmente supremo), na verdade, ocupa uma lacuna deixada pela representação política parlamentar brasileira e pela fragilidade dos partidos em mediar e produzir consensos sociais. Se o espírito das leis de Montesquieu retornasse em sobrevôo ao Brasil para constatar a aplicação doutrina do equilíbrio do poderes, verificaria que o poder do judiciário é muito, muito maior que o do parlamento.

Dois dos mais experientes parlamentares brasileiros, José Sarney (PMDB) e Miro Teixeira (PDT), esboçam diagnósticos que levam a pensar. Para Sarney, a culpa da judicialização é do PT na época de partido de oposição, que agora prova, na condenação de suas lideranças históricas (Dirceu, Genoino e Delúbio) do próprio veneno. Contumaz em provocar os tribunais em face de qualquer agressão à constituição de 1988 (que, suprema ironia, ele não assinou), o PT criou e alimentou uma fera. Por outro lado, no conceber de Miro, por vias tortas, a judicialização é uma espécie de mal necessário, um freio a potência voraz de nosso presidencialismo de coalizão.

O grave é que o judiciário é um aparelho no qual a cooptação de seus membros advém do concurso público (nas instâncias inferiores) e por indicação do executivo (nos tribunais superiores). Por mais que membros do ministério público muitas vezes não alcancem a profundidade da questão, o judiciário não é de investidura eletiva nem representativa. Na condição de aparato de poder compõe a burocracia do Estado. Relembrando a bela expressão de Rousseau, os juízes não são de modo algum “os comissários do povo”.

O caminho para resolver a ineficácia – por paradoxo, a “despolitização” de nossa representação política –, não deveria seguir o atalho do hiperativismo judiciário, mas o de uma reforma política que atacasse questões substantivas e não cosméticas, como o pacto federativo. Do jeito que o estado das coisas se encontra no Brasil, ao contrário de olhar no fundo da tragédia, constatou-se intituitivamente um problema – o hipoativismo do parlamento – e procurou-se resolver criando outro – o hiperativismo do judiciário. Do fraque e da cartola dos jurisconsultos (nome mais sonoro que o horrível “operadores do direito”) não sairão soluções, somente tapa buracos e remendos apostos a uma rota fantasia – a República brasileira.

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