Aos 80 anos de ascensão do nazismo



Jaldes Meneses

Este episódio se encontra narrado de diversas maneiras na internet e até transformado em piada da vida real, mas realmente foi um sonho e encontra-se registrado no necrológio de Habermas sobre Adorno. No último encontro entre o veterano filósofo e o jovem discípulo, Theodor W. Adorno e Jürgen Habermas, antes de o veterano filósofo ir ao encontro da indesejada das gentes (a morte metaforizada de Manuel Bandeira), Adorno contou a fábula onírica de um sonho estranho com nada menos do que com Charles Chaplin, um dos poucos cineastas que respeitava (o outro, dos conhecidos, era Antonioni). Era uma solenidade festiva em Hollywood, logo depois da Segunda Guerra, numa recepção para o protagonista do filme fictício “Os melhores anos de nossa vida”, um inválido de guerra que perdeu as duas mãos. Inadvertido e desleixado estendeu a mão para o autor e colheu um choque ao sentir o gélido toque metálico de um braço protético. Expectador atento do fato, Chaplin logo traduziu em pantomima o horror instintivo de Adorno.

Poder-se-ia entrever que a pantomima de Chaplin “quebrou o gelo”, aliviou a tensão da cena, transportando-a para outro plano, estetizado. O poeta Carlos Drummond de Andrade já havia percebido em versos a mesma sensação de alívio no cinema de Carlitos quando versejou que, diante daquele cinema, “homens apressados estacam. E readquirem-se” (À Carlitos). Não é a mesma sensação de Adorno. Recordo que no texto mais famoso de Adorno e Horkheimer, lição obrigatória nos cursos de comunicação social, o quarto capítulo (e o mais panfletário) de a “Dialética do esclarecimento”, Chaplin comparece duas vezes, uma elogiosa e a outra crítica. Na primeira menção, elogiosa, é lembrada o conteúdo popular da pantomima como “um ingrediente legímimo”. Porém, na segunda menção, a crítica é ácida. Trata-se de analisar o discurso final de “O grande ditador”, no qual “os campos de trigo que ondulam ao vento ao final do filme de Chaplin sobre Hitler desmentem o discurso antifascista da liberdade.

Para Adorno (e Horkheimer), de alguma maneira Chaplin havia “humanizado” Hitler ao fazer a paródia do ditador e brincar com os símbolos do nazismo no filme. Esses símbolos deveriam ser tratados como um interdito, jamais como comédia, uma cicatriz de lamento, pois o holocausto será sempre uma ferida eterna na civilização. A visada de Adorno revira o eurocentrismo pelo avesso: outras populações certamente foram dizimadas ao longo da história (os armênios pelos turcos na primeira guerra mundial, por exemplo), porém agora se tratava de enxergar a questão na Alemanha, berço da melhor filosofia e da melhor música da modernidade. O luto do nazismo deve ser encarado como eterno.

As reflexões de Adorno me ocorrem na semana em que se recordou (palavra bem diferente de comemorar) na imprensa ocidental os exatos oitenta anos em que Adolf Hitler se tornava o Chancelar da Alemanha. No Brasil, na quarta-feira (31/01), a presidente Dilma Rousseff homenageou o falecido embaixador Sousa Dantas e a funcionária do Itamaraty Aracy Rosa (uma da viúvas de Guimarães Rosa), que descumpriram ordens expressas de Vargas e deram vistos brasileiros a milhares de judeus. A cerimônia brasileira não recordou Hitler, mas o Dia Internacional das Vítimas do Holocausto, instituído no mesmo dia da assunção de o ditador. A mensagem cifrada da dupla data é que nada há comemorar, mas há muito que recordar, especialmente atos heróicos de insubmissão ao poder como os de Sousa Dantas e Aracy (um parêntesis: não sei por que não se incluiu nas homenagens o próprio Guimarães Rosa, já que ele participou, cônsul em Hamburgo, como chefe e cúmplice das ações da mulher).

O problema é que simplesmente recordar não previne. Só se previne se olhar bem no fundo e sem medo no olho da tragédia. Por isso, não se deve esquecer Hitler, mas estudá-lo e aprender com a experiência nazista, pois só assim ela pode se tornar um interdito como queria Adorno. Interditar não pode ser um ato de esquecimento, mas atitude de uma consciência social livre.

Resta saber se o tema deve ser reposto como paródia. Sempre se pode incorrer em equívoco quando se é prescritivo demais em arte. Portanto, Chaplin não humanizou o nazismo, embora tenha abordado de maneira humana o inumado em Hitler.

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