Duas Coreias


Jaldes Meneses

De todos os depoimentos que li sobre as duas Coreias nos últimos dias o mais terrificante foi o de um jornalista correspondente em Seul (capital da Coreia do Sul) de que a vida cotidiana “segue o seu ritmo normal”. Como assim, “segue o seu ritmo normal”? Enquanto isso, do outro lado da fronteira, em agônico contraste, divisões do exército são convocadas em desfiles militares de saudação ao novo “ególatra” (o termo é do escritor Aleksander Solzhenitsyn), o rapazinho que mais parece um boneco de cera que atende pelo nome de Kim Jong-un. Invoquei Solzhenitsyn, um notório anticomunista, mas poderia citar um autor de indiscutíveis credenciais de esquerda – Leon Trotsky –, para quem a União Soviética sob Stalin refazia surpreendentemente o slogan de Luis XIV (monarca absolutista francês), “de o Estado sou EU” para a “Sociedade sou EU”.

Pus de propósito em cena o contraste de clima das duas Coreias visando relfetir a radical diferença de clima dos dois Estados de cultura irmã diante do abismo. A Coreia do Sul, em que pese todas as críticas da realidade do domínio estratégico-militar americano desde 1949, constitui-se uma sociedade civil aberta e pluralista, para o bem o para o mal. As pessoas tocam as suas vidas, enquanto os domínios da guerra são encargos dos profissionais. Por isso, a vida, aparentemente, “segue o seu ritmo nornal”. Por outro lado, tem-se na Coreia do Norte uma sociedade totalmente militarizada. Defina a Coreia do Norte como “socialista”quem quiser. O verdadeiro conteúdo daquela formação social é – perdoem o palavrão –, Estratocrata (poder do exército).

Sem dúvida, os que “seguem o seu ritmo normal”na Coreia do Sul parecem anestesiados, sobreviventes de sociedade do trabalho e do consumo desprovidos de cidadania cívica – a “vida de gado”do nosso querido Zé Ramalho. Contudo, as paradas militares da Coreia do Norte se aparenta a um mórbido desfile de histéricos. Entre anestesiados e histéricos, prefiro os anestesiados.

Durante toda a guerra fria publicistas liberais e de esquerda glosaram a iminência de uma hecatombe nuclear. Adorno, filósofo alemão, afirmava – “eu vi o espírito do mundo – ele vinha na cabeça de uma ogiva nuclear”. Depois do desmanche do bloco da União Soviética, por um passe de mágica, a perspectiva de um desmanche nuclear sumiu do mapa. Puro blefe, que explica inclusive o fato que em 1962 os povos acompanharam ativamente todos os lances da crise dos mísseis em Cuba e, hoje, em tempos de internet, a “vida segue o seu ritmo normal”.

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