Amor e capital
Jaldes Meneses
Passei
15 dias dedicados à leitura das cerradas 957 páginas de “Amor e capital”,
biografia escrita por Mary Gabriel (ex-editora da agência de notícias Reuters)
recém lançada no Brasil, que abandonou o bom emprego para passar oito anos na
incerta ocupação de ler e pesquisar em livros e arquivos empoeirados a saga da
família Karl e Jenny Marx.
Não se trata de assunto inédito.
Vários escritores, sem mencionar as hagiografias da antiga Editorial Progresso
de Moscou, já se ocuparam dos dramas dos Marx. Li várias biografias de Jenny e
Marx. De memória, recordo o belo livro de Edmund Wilson, “Rumo à estação
Finlândia”. Embora não seja precisamente uma biografia de Marx, “mas de homens
que fizeram ou escreveram a história” (de Michelet a Lênin), o livro de 1940,
continha, em época de documentação guardada a sete chaves nos porões russos,
muitos dos elementos de vida privada explorados nas atuais biografias. Lá já
estão registrados dramas como o filho que Marx jamais assumiu e o suicídio de
duas filhas. Um dos mais importantes críticos literários americanos do século
XX, Wilson estava longe de ser um comunista, mais expressava a consciência
liberal em plena segunda guerra mundial, que lia Marx com respeito e admitia
uma aliança estratégica com a União Soviética contra o nazismo.
Na década de oitenta, de explosão
no mundo acadêmico dos estudos feministas de gênero, foram publicados um série
de estudos no qual se mostrava Marx como um machão chauvinista, que subordinou,
através do matrimônio, uma mulher inteligente e belíssima a seus caprichos.
Desses livros, sem dúvida o mais representativo é o de Françoise
Giroud, “A mulher do diabo”. Embora se pretenda uma leitura libertária, o
interessante é que esse tipo de literatura, ao excomungar o “diabo”,
paradoxalmente coincidia nos principais tópicos com o tipo de apreciação
anticomunista, que espalhavam o pânico às ideias do “mouro satânico”.
Há uma suave
contradição, imposta pelo tempo, entre alguns escritos – principalmente as
incursões antropológicas – de Marx e Engels e a forma familiar adotada pelos
Marx. Os socialistas do século XIX pregavam a dissolução da família monogâmica.
As sociabilidades do futuro, ninguém sabe ao certo quais serão, embora as
possibilidades, previstas por Marx de substituição do trabalho abstrato pelo
trabalho associado– vale dizer, o comunismo –, deverão em contrapartida,
alterar radicalmente os elementos que ligam a família à perpetuação da
propriedade privada.
O livro de Mary Gabriel, ao contrário das
aspirações do socialismo do futuro, mostra-nos uma família Marx plenamente assimilada
ao padrão vitoriano. A palavra final dependia da aquiescência do patriarca, e
arrisco o palpite de que muitos dos sofrimentos do núcleo familiar atendiam aos
mesmos sintomas das patologias burguesas do século XIX, dissecadas pela
psicanálise. O mérito do estudo de Gabriel, é que não se trata de uma mera
catarse de protesto feminista. Trata-se de um estudo crítico no qual Marx e sua
família saem engrandecidas no livro. Havia entre eles, enfim, um projeto comum,
uma solidariedade posta à prova nos difíceis momentos da perseguição política e
da morte. Se a vida em família não são somente amor e flores, quem atira a
primeira pedra?
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