Lincoln e Marx
Jaldes Meneses
Um dia desses, em entrevista sobre política a um programa local de televisão, um expectador, através do twitter, me perguntou, tentando justificar o mensalão, o que achava de o presidente Lincoln também ter “comprado” votos nos Estados Unidos para conseguir a abolição da escravatura. Respondi elipticamente que mãos sujas não produzem política limpa. Mas a questão voltou algumas vezes à minha cabeça, por assim dizer não me abandonava.Evidentemente, o expectador havia assistido, com eu, o filme “Lincoln” de Steven Spielberg, baseado em um pequeno trecho do livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin, que recolhe um episódio fortuito de uma história muito mais complexa. Para ele, a verdade da guerra de secessão americana – ajudado pela interpretação verossimilhante de Daniel Day-Lewis –, em vez de resultado de pesquisa histórica, passou a ser a ficção de Spielberg, recheada de recados a Obama de como suportar estoicamente, em nome de uma causa maior, as lutas congressuais de hoje.
Nem falo mais do espectador que fez a pergunta. Todos nós, em maior ou menor grau, somos sugestionados pela sedução das imagens. Eu, presa fácil (e consciente) do naturalismo realista, não consigo pensar em Moisés sem associá-lo a Charlton Heston, ou em Ghandi desprovido da sombra de Ben Kingsley. A lista é interminável.
Li uma crítica recente de Slavoj Zizek no qual ele diz que paradoxalmente há mais verdade em “Lincoln, Caçador de Vampiros” (uma fábula infanto-juvenil típica de filme B, dirigida por Timur Bekmambetov, na qual o herói americano, auxiliado por zumbis-escravos empreende uma guerra sem trégua a vampiros-escravocratas) do que no naturalismo noveleiro de Spielberg . Não deixa de ter razão.
Quando Lincoln foi reeleito em 1864 (primeiro presidente americano reeleito), de Londres, Marx parou de trabalhar nas provas de “O capital” e mandou uma correspondência em nome da 1ª Internacional dos trabalhadores, saudando o grande feito. Lincoln respondeu através do embaixador americano na Inglaterra. Relembro fato tão aparentemente minúsculo, mas sintomático, para observar que as relações internacionais do partido Republicano no século XIX, diferentemente de hoje, passavam por contactos amistosos com o movimento operário e os radicais em geral.
Spielberg não tinha a obrigação de roteirizar essas histórias. Porém, de alguma maneira, ao deixar de roteirizá-las escolhe mostrar um “outro” Lincoln, mais parecido com um democrata americano do século XXI (Obama) do que um republicano do século XIX. Em Hollywood, sobra naturalismo, mas falta historicismo e hermenêutica.
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