40 anos sem Salvador Allende

Jaldes Reis de Meneses

            Completamos no mesmo dia do ataque às Torres Gêmeas, bem como da data mais prosaica do nascimento do filósofo marxista Theodor Adorno, 11 de setembro, a data do golpe militar no Chile, culminando com o suicídio, em segundo andar de Palácio, do presidente eleito constitucionalmente, Salvador Allende, que morreu como um touro que preferiu não ser fustigado pelos algozes.
Mais que recapitular passo a passo o processo chileno da Unidade Popular (1970-73) – para o qual existe farta literatura a respeito –, gostaria de insistir que a experiência chilena está mais viva que nunca. Diz respeito direto e incidente aos nossos dias, no qual várias distintas experiências de governos de esquerda dominam a América Latina, que alguns dividem entre esquerda “soft” (Dilma no Brasil e Mujica no Uruguai) e “hard” (os bolivarianos Maduro na Venezuela, Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia).
Soft ou hard, as experiências mais conciliadoras ou radicais possuem um traço comum: ambas veem se erguendo através de processos abertos e democráticos de socialização da política. Não estou propondo uma estratégia única, até porque, como dizia Gramsci, ao se propor uma estratégia vitoriosa, é preciso, antes de tudo, conhecer milimetricamente o “terreno nacional” – ou regional, no caso dos países bolivarianos. Mas penso haver a possibilidade de reconhecer uma lógica estratégica submersa a essas experiências, por mais dispares que eles sejam.
Neste sentido, parafraseando o dirigente petista Valter Pomar, numa frase de bom efeito retórico, talvez Salvador Allende seja mais contemporâneo nosso que Che Guevara (ao menos daquele Guevara que deixou um cargo de ministro em Cuba e se embrenhou pelas selvas do Congo e da Bolívia). Nem se trata de negar a existência de um momento necessariamente militar nos processos de confrontação política, como pode parecer à primeira visada, mas somente de lembrar que nas sociedades complexas do capitalismo avançado, nos termos de Gramsci, não é mais certo falar em passagem de guerra de posição em guerra de movimento. O certo é perceber que a guerra de posição é permanente: ela contém o movimento no seu bojo.
Tão logo se consolidou o golpe militar no Chile e começou a carnificina de prisioneiros políticos no Estádio Nacional, uma polêmica percorreu a esquerda mundial: para alguns, a tentativa de realizar uma transição ao socialismo pela via democrática tornou-se impossível. Contra o golpismo dos generais o golpismo da esquerda.
Não se trata de negar o papel da violência na história, especialmente a de massas contra um regime tirânico, admitido recorrentemente por Locke e Hegel, entre muitos pensadores. Em livro recente, “Em defesa das causas perdidas”, o filósofo-pop Slavoj Zizek afirma, em tom polêmico, que os nazistas fizeram a coisa certa, mas se dirigindo ao lado errado (a direita chauvinista). No fundo, Zizek estava reeditando, neste começo de século, sentenças parecidas aos que viam nos ataques exemplares de homicídio aos gerentes de fábricas e os “operários-padrões” – até chegar ao martírio de Aldo Moro – dos pequenos grupos de guerrilha urbana europeu da década de 1970, a “força produtiva da autoafirmação”. Exatamente um nascido a 11 de setembro – T. Ador no –, escreveu sobre as propriedades dialéticas das “interconversão”, ou seja, a possibilidade, em alguns casos, de haver um ponto de cruzamento entre a esquerda e a direita. Pode ser que haja uma “interconversão” entre a autoafirmação terrorista de esquerda e o velho “poder purificador da força”, pseudamente esquerdista.
Foi exatamente a estratégia dos pequenos grupos de guerrinha urbana, que vinham se radicalizando passado o momento de agregação de 1968, que se fortaleceu momentaneamente no encalço crítico das estratégias de acumulação de forças rumo à construção das premissas do socialismo, a exemplo das frações majoritárias da UP chilena. Novamente, parece que essas estratégias, uma amalgama de autonomismo anarquista justapostos a elementos seletos de marxismo, reaparecem reciclados, na condição de um subproduto das manifestações de rua.
As estratégias impacientes das interconversões, audaciosas e inconsequentes exatamente no pronto de cruzamento, somente servem ao recrudescimento daquele conjunto de forças obscurantistas do status quo que Marx chamava de “partido da ordem”. Ao inverso, foram as estratégias da frente única chilena, que deram certo desde os anos 30, até a triste derrota de 11 de agosto de 1973. A verdadeira tragédia não é quando se vê derrotado, mas quando se perde a razão.

            Viva a Salvador Allende, 40 anos depois!

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