Flores Raras


Jaldes Reis de Meneses[1]

              Através do intimista e elegante filme Flores Raras, o cinema irregular e repleto de altos e baixos de Bruno Barreto deu-nos à luz ao melhor filme de sua longa carreira. É verdade Barreto já foi um dia, ainda nos tempos da Embrafilme, um cineasta que provou do gosto popular, principalmente quando consorciado à literatura apimentada da segunda fase romanesca de Jorge Amado e ao corpo brasileiro de uma jovem Sonia Braga, no formidável Dona Flor e Seus Dois Maridos, atingindo píncaros de bilheteria. Por outro lado, quando inventou de enveredar pelo thriller político,brindou-nos com o sofrível Que é isso, Companheiro?
Começo a constatar, examinando em retrospectiva o conjunto da obra, que o melhor cinema de Barreto se move por uma embocadura intimista, em vez do cinema popular ou o thriller político. Isto desde a sua estréia aos 18 anos, quando se lançou com ares de menino prodígio, filmando o também tocante Tati, a Garota (adaptação de um conto de Aníbal Machado), filme que contava a história de vida de uma mulher solteira grávida que se muda com a filha de seis anos de um bairro da periferia para Copacabana.
O intimismo elegante de Flores Raras – se me é permitido repetir a expressão – já havia se insinuado em Bossa Nova (2000). Mas este filme se perde em virtude da banalidade asséptica do enredo, um caso entre um homem maduro (Antonio Fagundes) e uma professora de inglês estrangeira (Amy Irving). Por paradoxo, uma bossa nova glacial (Antonio Cicero: "e o inverno no Leblon é quase glacial").
A apresentação cenográfica do Rio de Janeiro em Bossa Nova é o quase o mesmo de Flores Raras. A diferença reside em que, antes, o drama era de uma classe média adaptada ao modo de vida singelo e despachado da zona sul carioca, e agora o enfoque desloca-se para os cumes da elite intelectual e política brasileira e internacional – vanguardista em artes e costumes e conservadora em política –, com ênfase no conhecido caso de amor entre a arquiteta Lota Macedo de Soares (Glória Pires) – filha de Eduardo Macedo de Soares, dono do “Diário Carioca” e antivarguista ferrenho – e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto).
Trata-se de um filme que mostra a beleza do amor entre mulheres sem se deixar trair pela tentação fácil de fazer proselitismo. Sabe-se que Bishop, nem em poesia nem em vida, sentou praça do lesbianismo como corrente política, talvez por que tenha preferi-lo vivê-lo como profunda intimidade lírica. Numa das primeiras cenas do filme, ao preencher na alfandega brasileira a profissão, Elizabeth Bishop escreve “poet”. Poderia grifar escritora. Mas escritora remete diretamente à profissão. Enquanto isso, a escolha sempre desconsertante de “poet” reflete uma opção virtuosa pelo ócio criativo que pode render o nectar da melhor poesia, ao estilo descompromissado de uma cultora da “arte pela arte”.  
Há pessoas que escolhem sair da história, a jovem poeta americana, em crise existencial que começa a lhe afetar a criação, resolveu passar alguns dias num país exótico (o Brasil), em busca do que nunca se sabe. É recebida pelos estranhos alienigenas chamados de brasileiros e de imediato intoxica-se com caju. Adaptando-se ao estranhamento, reencontrou-se momentaneamente, entre a serra e Petrópolis e o mar de Cabo Frio, inserindo-se em um círculo lírico grego, tão virtuoso quanto o de Safo de Lesbos, um amor vivido como companhia, ao estilo da philia grega – que lhe renderam alguns de seus melhores poemas, de uma sonoridade bela – “it is marvellous to wake up together/É maravilhoso despertar juntas”.
Há uma polêmica estéril sobre a existência um olhar feminino em artes. Existe uma sensibilidade feminina, cujo acesso não é propriamente franqueado exclusivamente às mulheres. A propriedade da arte é precisamente transpor criativamente. Da mesma maneira que Tolstói criou Ana Karênina, coube a Bruno Barreto reconstruir em cinema o círculo lírico de Elizabeth e Lota. O cinema brasileiro contemporâneo, enfim, alcança a sensibilidade digna de um filme argentino.
Na Grécia antiga, os círculos líricos foram introduzidos a contrapelo, na exaustão da atitude épica – que de alguma maneira prefigurava uma dimensão pública -, querendo representar a intimidade. Muito do drama da relação entre Bishop e Lota reside no fato que ninguém, mesmo convivendo numa elite protegida e aristocrática, consegue ser alheio à dimensão épica, ainda mais em um país de ex-escravos em formação, elemento que, aliás, ao seu modo, a conservadora Bishop conseguiu espontaneamente detectar na correspondência epistolar com o poeta e amigo Robert Lowell, publicada no Brasil.
Com isso, estou querendo dizer que a dimensão pública entrou de chofre na vida de Bishop exatamente no momento que Lota aceita dirigir as obras do Parque do Aterro do Flamengo, e dedicar-se integralmente a ela, assim desfalecendo a relação de amor íntimo e lírico. Abandonada pelo trabalho duro e artimanhas políticas necessárias à condução de uma grande obra pública, Bishop muda-se para Ouro Preto e depois retorna a Nova Iorque. Encontra um novo amor, uma estudante americana.
 Os papeis se invertem na relação: a pragmática e dominadora Lota fragiliza-se, tanto em função das intrigas da construção do Parque, e principalmente em função das viradas da conjuntura imediatamente após o golpe de 1964, como também do afastamento da poeta, fragiliza-se, até acabar a própria vida. O forte torna-se fraco.
Neste ínterim, finalizando, não resisto em apontar uma licença poética do roteiro de Barreto, em busca de adaptar a figura do personagem a um senso comum politicamente correto: as cartas de Bishop demonstram sobejamente que ela apoiou sem traumas o golpe de 64. Portanto, está longe de proceder que esse acontecimento capital, por divergência de análise política, tenha interferido no desenlace do amor entre ele e Lota. Bishop valorizava uma aristocrática intimidade, mas estava longe de ser despolitizada, ao contrário. Escolher viver um círculo lírico, ao seu modo, pode ser considerado, lato sensu, uma decisão política. Muitas vezes, uma sábia decisão política e estética.    

O poema cujo verso é citado no artigo:
"É maravilhos despertar juntas"

É maravilhoso despertar juntas
No mesmo minuto; maravilhoso ouvir
A chuva começando de repente a crepitar no telhado,
Sentir o ar limpo de repente
Como se percorrido pela eletricidade
Numa rede negra de fios no céu.
No telhado, a chuva cai, tamborilando,
E cá embaixo, caem beijos brandos.

Uma tempestade está chegando ou indo embora;
É o ar carregado que nos desperta.
Se um raio caísse na casa agora, desceria
Das quatro bolas azuis de porcelana lá no alto,
Se espalhando pelo telhado e os para-raios a nossa volta,
E imaginamos sonhadoras,
Que a casa inteira, uma gaiola de energia elétrica,
Seria muito agradável, e nada tétrica.

E do mesmo ponto de vista simplificado
Da noite, e de estar deitadas,
Todas as coisas poderiam mudar com igual facilidade,
Pois por esses fios elétricos negros
Seríamos sempre alertadas. Sem surpresa,
O mundo poderá virar algo muito diferente.
Tal como o ar muda ou o relâmpago cai sem piscarmos,
Como estão mudando nossos beijos sem pensarmos.


BISHOP, Elizabeth. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[1] Professor Associado do Departamento de História (UFPB). e-mail: jaldesm@uol.com.br.

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