Getúlio Vargas

Jaldes Meneses

Passou quase em brancas nuvens os 59 anos do suicídio no dia 24 de agosto do ex-presidente Getúlio Vargas. Se não fosse o lançamento neste mês do segundo volume da extraordinária biografia de Lira Neto (Getúlio, volume II, Companhia das Letras, 2013), e afora uma nota ou outra quase desaparecida num pé de página de jornal ou canto escondido de portal de internet, o silêncio seria quase absoluto. É sabido que no próximo ano, quando será completa a data redonda dos 60 anos, com Tony Ramos interpretando o próprio Getúlio no cinema, a lembrança aumentará os decibéis de volume. No entanto, mais por operação de marketing do que por espontaneidade popular.

Tanto ostracismo é incrível, isso por que, caramba, é impossível entender a história do Brasil no século passado – especialmente a política e a economia do capitalismo brasileiro – sem passar demoradamente pelo cotejo da saga contraditória do retrato do velho Gegê e seu charuto astuto. Pode-se considerar que o trauma do acontecimento do suicídio de Getúlio – ato pensado, que sua personalidade incrivelmente controlada e depressivamente racional cogitou levar a cabo em vários momentos, de uma perdida noite solitária na fazenda de um amigo de seu pai, na adolescência, à revolta paulista de 1932 –, que mobilizou, uma vez finalmente perpetrado, o choro de tanta gente do povo, foi-se definitivamente embora e não vale mais a pena exumar a este cadáver.

Pelo que se deduz e se vê, afinal, o cadáver não é mais insepulto. Mas, se já não há mais presença ativa do mito, o resíduo, o espectro, a imagem fugidia, se foi? E se foi mesmo, em quais termos?

Nietzsche – um autor que Getúlio apreciava na juventude –, num de seus disparos de dinamite – a segunda das “Considerações extemporâneas”, dedicada ao questionamento da historiografia acadêmica alemã do século XIX –, afirmava haver mais sabedoria no esquecimento do que na memória. Por insistir em retornar o incômodo passado, os historiadores são uns parvos e infelizes, além de estarem longe da sabedoria.

Outro grande filósofo, Hegel, na sua “Filosofia da História” afirmava que a história, ao contrário do que todo mundo pensa a respeito, está distante de ser uma “mestra da vida”. Não existem lições exemplares a ensinar, por um simples motivo: cada época se encontra em circunstâncias tão peculiares, representam uma situação tão individual que os acontecimentos não se repetem, portanto, sempre são partícipes de distintas constelações. Para Hegel, antes dos fatos, o que se repetem na forma aparente dos grandes acontecimentos (prestem a atenção a esta expressão: na forma) são os processos, a essência, o conceito, que ele, idealista, chamava, nebulosamente, de objetivações do espírito absoluto.

A sabedoria reside em esquecer em vez de lembrar e a história não é mestra a vida? Talvez, quando realmente não é o caso de transformar a saga de Getúlio em um mito, um personagem ambíguo que tanto foi ditador-carniceiro como mártir voluntário das reformas sociais.

Quem circula por países como a Argentina ou Venezuela conhece a força da onipresença das sombras de Perón e Bolívar, fontes de movimentos influentes como o peronismo e o bolivarianismo. Na Venezuela, há um retrato de Bolívar em cada escola, que Hugo Chávez espraiou a cada esquina. Na Argentina, embora os militares tenham se esforçado em varrer a memória de Perón do mapa, o reprimido em vingança retornou como se fosse um espectro eterno.

Numa das passagens de “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro, em ressonância lockeana, afirma que o brasileiro é um povo “tábula rasa”, uma “página de papel em branco”. Por isso, ele, o povo, nós brasileiros, constituímos um povo aberto às novidades da modernidade, que aqui aportou sem carecer de passar por cima atropelando as tradições. Constituímos, neste aspecto, como os Estados Unidos ou a Austrália, uma “província branca”. O problema da “província branca” brasileira, reconhecido por Darcy, é que passamos de uma novidade a outra, deixando de consolidar um ethos social duradouro.
Seria o Brasil a terra dos sonhos de Nietzsche e Hegel? Os sábios exageram como método. Exorbitam das imagens para ver mais longe. Para esquecer, é preciso atravessar por dentro, extrair a fórceps os recalques, em processo penoso, e não simplesmente contornar, pois assim nos comportando estamos fadados a repetir.

Esquecemos Getúlio Vargas com ou sem os recalques? Muitas vezes os recalques parecem desaparecer, mas retornam em surpreendentes e em inéditas configurações. Sem sossego, quando o assunto é a história brasileira, as questões mortas costumam reaparecer.

Foram, a propósito, a tais renitentes “questões mortas”, sublimadas e esquecidas, que dormitavam subterrâneas na maré de otimismo gerada nos tempos atuais de lulismo e dilmismo (os 10 anos compreendidos entre 2003 e 2013). O morto-vivo (o gigante que acordou do sono profundo), contudo, reapareceu nas ruas, nas já históricas “jornadas de junho”. Ou seja, reapareceu o que jazia a uma camada arqueológica da superfície: o passivo brasileiro de reparações e desigualdades. Até o dia em que Amarildos desaparecerem nas favelas, o fato vale por sintoma. Não curamos o recalque e, por conseguinte, o nosso esquecimento é disfarce. O herói-carniceiro-ditador-democrata Getúlio Vargas renasce. Mas como dói.

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