Aos 100 anos do nascimento de Vinicius de Moraes


                                                                                                                               Jaldes Meneses


Entre as muitas histórias que se pode contar de Vinicius de Moraes (1913-1980) – um dos maiores poetas modernistas brasileiros do século XX, cujo centenário de nascimento o Brasil comemora no dia 19 de outubro –, começo com uma que reúne em único ato política e poesia.

O folclore do poeta é vastíssimo, de modo que procurarei me abster de temas como a bebida, os amores e o modo de viver da zona sul carioca. Muitas vezes, o folclore lança brumas, obscurece a recepção da obra daquele que é sem favor um dos sete principais poetas modernos brasileiros do século XX, quase ou no mesmo nível de Drummond, Cabral, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Murilo Mendes.

Ao que parece, o poeta recebeu a notícia de cassação do Itamaraty, em visita à casa de sua mãe no Brasil, na esteira da edição do AI-5. Em seguida, em 1969, certamente para arranjar a vida nova, viajou em excursão a Portugal, onde teve o amargor de enfrentar, na porta do Teatro, o protesto de direita de estudantes da juventude salazarista. Aconselhado a evitar a aglomeração e sair pelos fundos do teatro, o poeta fez justamente o contrário. Fez questão de se dirigir à porta principal e começou a recitar a plenos pulmões, emocionado e em voz alta, um curto soneto, sem dúvida um dos principais de sua extensa obra – Poética, escrito em Nova York, 1950 –, que começam e terminam assim:

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste, a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço
— Meu tempo é quando.


Contam os presentes – ou a lenda, não saberia dizer ao certo – que o apupo original transformou-se em ovação (os estudantes salazaristas, ao menos, tinham sensibilidade poética).

Gosto muito de Poética e espero que, após a leitura, o leitor tenha a real percepção do exercício de contenção desses versos, da capacidade cirúrgica do poeta: cada palavra encontra o lugar certo, sem tirar nem por. O resultado é um efeito de fluxo contínuo parecido com a própria sensação corrida de tempo, contraditório em relação ao espaço como aos pontos cardiais da geografia; se assim o fosse, seria simplesmente mais um entre tantos poemas contempladores do tempo que corre. Todo soneto deve ter um fecho. A nota pessoal dissonante de Vinicius, a provocar estranhamento, é, com licença da palavra, “adverbializar” o conectivo de tempo, retirando-lhe exatamente a função de conectivo. Ele poderia fechar o soneto com um anódino: “meu tempo é hoje” ou coisa parecida; no entanto, explode na página o inusitado: “meu tempo é quando”. Neste caso, adverbializar significa subjetivar, torcer o tempo. Não se trata de negar o que não pode ser negado — o misterioso contínuo do tempo —, mas de operar um jogo de inversão de que tratarei a seguir.

A escolha de Vinicius em enfrentar a horda de estudantes fascistas com precisamente esses versos coincidia, em seu sentido profundo, com o principal pensamento imerso no poema: o tempo é fluxo inevitável, mas também surge a ocasião, o momento de agir. De repente, o poema politizou-se. Em termos do enfrentamento às ditaduras daqui e alhures, passava o seguinte recado: os tempos podem ser duros, mas meu tempo é outro. O "hoje" é inevitável, sem dúvida, mas "meu tempo é quando".

A poética de Vinicius sempre esteve cercada de incompreensão. Foi criticado por sua adesão à música popular por amigos como Rubem Braga, entre outros. Santa incompreensão: Vinicius, além de ser um dos nossos grandes letristas da música popular, comportou-se como um renovador desde a bossa nova, trouxe a linguagem coloquial, o diminutivo, a gíria, dando um novo frescor à canção.

Neste ínterim, vale observar que embora alguns parceiros tenham musicado antigos sonetos (Toquinho e Tom Jobim, principalmente) e haja um frequente transito de imagens da poesia para a música, o Vinicius da canção é diferente do poeta, não havendo correspondência biunívoca entre um ao outro. Em termos de canção popular, o poetinha logo percebeu a diferença estrutural entre canção e poesia, ou seja, o caráter heterotélico (o que tem finalidade ou sentido além ou fora de si) da letra da canção, sempre a requisitar um fundo musical, em contraponto à autonomia autotélica do poema. Por isso, foi um letrista excepcional.

Por outro lado, na poesia escrita, Vinicius na maioria das vezes se deu melhor nas formas fixas (o soneto, a balada, a elegia) do que no verso livre. Aparentemente, na época moderna, as formas fixas ficaram no passado, e muitos fizeram esta acusação superficial ao poeta. Determinadas reavaliações críticas recentes da poesia de Vinicius começam a dissipar o equivoco de flagrar passadismo no uso de formas fixas, a exemplo do trabalho do poeta e crítico literário carioca Eucanaã Ferraz, por exemplo, que supõe uma surpreendente interface entre o uso da quadra nordestina por João de Melo Neto e o soneto por Vinicius (poder-se-ia pesquisar as afinidades eletivas com o trajeto poético de Drummond até chegar aos frutos maduros de Claro Enigma). Ao contrário do derramamento retórico da tradição parnasiana do bacharelismo pré-moderno brasileiro, assim como em Camões, e tanto quanto em João Cabral, o soneto em Vinicius trata-se de um exercício formal de contenção. Com a palavra, o próprio Vinicius: "o soneto é uma prisão sem barreiras, sem grades. Só dentro da prisão que ele encerra se pode atingir a liberdade maior".

Vinicius estava longe de entronizar a métrica e a rima e acabar com o verso livre, cair no desatino de reeditar uma nova escolástica poética. Cito em seguida uma autorreflexão de João Cabral de Melo Neto, como índice de uma possível serventia para o estudo pelo avesso também do caso de Vinicius - "uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto (...) No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil".

São veredas diferentes – o "coração" e a "pedra", na feliz expressão de Eucanaã –,depois das primeiras experiências em versos livres, Vinicius ((Caminho para a distância, 1933; Forma e exegese, 1935; Ariana, a mulher, 1936) e João Cabral (Primeiros poemas, 1937-1940; Pedra do sono, 1941),fizeram um giro, apelaram a distintas tradições poéticas clássicas, modernas e folclóricas, contudo sem desbordar da modernidade nem apelar a regressões,ao contrário, a insistente busca da metrificação, em ambos os casos significou um movimento subjetivo de afastamento, uma negação tipicamente moderna como só nós, modernos, somos capazes de fazer: no primeiro caso, Vinicius, dar adeus à influência sufocante do transcendentalismo cristão; no segundo, João Cabral, conter, com a perícia de um engenheiro, em benefício de um projeto construtivista antilírico e antirretórico, os desvios oníricos surrealistas.

Comentários

Anônimo disse…
Eis uma análise genial, verdadeira homenagem ao grande poetinha. Parabéns!
Arnóbio Viana.

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