Carlos Lacerda (1914-2014)
Jaldes
Meneses
O neto reconstrói a vida do avô, mas
vai além, ou melhor, evoca do além a voz do avô defunto, alçado à condição de
narrador reflexivo de sua própria vida em terra.
Um
morto narrando sua passagem na terra. A remissão literária evidente são as
“Memórias póstumas de Brás Cubas” do bruxo Machado de Assis. Entretanto, o
livro de Machado, embora narrasse irônica e corrosivamente as agruras de um
tipo social da “elite branca” escravista dos oitocentos brasileiro, era pura
ficção, realista que fosse, ao passo que o magnífico “A república das abelhas”, escrito por Rodrigo
Lacerda sobre o avô, Carlos Lacerda – uma das personalidades políticas mais
importantes do século XX, a completar 100 anos nestes 2014 –, poderia ser mais
uma dessas biografias lastreadas em pesquisa documental, trata-se de um –
conforme pode ser lido subtítulo da capa do livro –, “romance”. Há algum enigma
a ser desvendado na arquitetura literária adotada por Rodrigo?
Penso
que sim. Carlos Lacerda anda esquecido (não vi ninguém lembrar-se de seu centenário
de nascimento), mas sabem de memória os seus contemporâneos – hoje na casa
mínima dos 70 anos – que ele percorreu uma trajetória política que atravessou
um arco ideológico de A a Z. Imitando o pai Maurício (primeiro deputado
socialista do Rio de Janeiro) e os tios Paulo e Fernando (ambos foram
secretários gerais do PCB), começou na esquerda comunista e aos poucos, na dura
estrada da vida, converteu-se da condição de ateu a católico, de comunista a
liberal. Mas – este aspecto é fundamental –, menos que um convertido profético
à causa, à lá São Paulo ou Santo Agostinho, Lacerda avô de fato rendeu-se aos
encantos da realpolitik brasileira, tornou-se, no apogeu
de sua liderança política, governador da Guanabara, candidato a Presidente da
República em 1965 e golpista de 1964.
O livro de Rodrigo passa distante da apologética. Longe de querer
justificar a trajetória, para muitos errática do avô, o autor busca explicação
na história republicana brasileira, neste caso examinada por dentro das
relações de intimidade. Vai buscar um paradoxal fio contudor na história íntima
de uma família devotada à luta política – o tataravô, Sebastião, foi um
republicano radical e o mais liberal dos ministros do Supremo Tribunal Federal
na República Velha, os tios foram dirigentes do PCB e o avô socialista. Rodrigo
enxerga na família, apesar das rupturas ideológicas, um fio de continuidade
expressivo do balancê da elite brasileira.
Desde Machado, qual narrador melhor aproriado de uma família da elite
brasileira que a voz de um morto a fazer o inventário de si mesmo?
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