Presença de Getúlio Vargas

Jaldes Meneses

Escrevo nas proximidades do dia de aniversário de 60 anos do suicídio de um dos personagens históricos cuja bibliografia mais vasculhei e indaguei a mim mesmo a complexidade de seu martírio, mas não me anima escrever um artigo convencional sobre Getúlio Vargas, cinematograficamente atado ao episódio do suicídio. Vargas foi maior que o gesto final. Em vez das perguntas de praxe, por que não introduzir o leitor nas complexidades da história contemporânea brasileira? Realmente, um Brasil não é um país para amadores, por isso tão cativante. Estava formulando este parágrafo quando me chegou aos ouvidos, pela voz de uma minha filha ao celular, a notícia da morte de Eduardo Campos. Estranha coincidência, somente?
Os melhores intelectuais intérpretes do Brasil detestavam Getúlio Vargas. Logo me vem à mente o prefácio da segunda edição de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, escrito em 1946, no qual Vargas é descrito como “ditador totalitário”. Caio Prado Jr. não fica atrás, para ele, conforme lemos nas primeiras páginas de “A revolução Brasileira”, toda a “era Vargas” foi um grande mal entendido. Poderiam multiplicar as citações: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Florestan Fernandes, etc. Teriam Sérgio Buarque e Caio Prado razão? 
A resposta não é fácil. De certa maneira, sim. De outra maneira, não. A grande cisma dos intelectuais deu-se porque Vargas chegou ao poder ancorado em promessas democráticas, e logo que pôde instaurou uma ditadura feroz e sanguinária. Atualmente, é natural que todo o foco da crítica democrática ilumine as perversões da ditadura militar de 1964. Contudo, no mais das vezes esquecemo-nos das diabruras do Estado Novo.
A esquerda brasileira, afirma resolutamente nos diagnósticos das Comissões da Verdade que a Lei de Anistia de 1979, ao perdoar os torturadores através dos chamados eufeministicamente “crimes conexos”, resultou em infâmia. No entanto, a mesma esquerda tende a ser condescendente com o acórdão indigno da deposição militar (junto com o Supremo Tribunal Federal) de Vargas em 1945, que simplesmente “exilou” o ditador em São Borja, de onde, logo que chegou, elegeu-se senador e passou a articular o retorno ao Catete. São essas falcatruas que motivam os veredictos duros de Sérgio Buarque e Caio Prado Jr.
Formidável amálgama de avanço e atraso. Figura bifronte, por um lado, Getúlio urdiu o moderno Estado brasileiro – leia-se, do serviço público (DASP) até as leis trabalhistas e estrutura sindical corporativa (CLT) –, na parte do avanço (ou nem tanto). Por outro lado, o seu poder unipessoal de ditador, na parte do atraso, ajudou a estruturar, Estado a Estado da federação, o poder das lideranças oligárquicas que continuaram a controlar o poder, mesmo de sua deposição.  Os intelectuais estavam no seu papel ao criticar o atraso, bem como em desconfiar dos avanços, pois sabiam, mesmo intuitivamente, que no Brasil o avanço funcionaliza o atraso.  Por tudo isso, desconfio da esquerda que simplesmente tece loas ao “legado” da era Vargas, sem passá-la criticamente a limpo.
Mas que figura humana complexa! Vamos ao episódio do suicídio. Pode-se considerar que o trauma do acontecimento do suicídio de Getúlio – ato pensado, que sua personalidade incrivelmente controlada e depressivamente racional cogitou levar a cabo em vários momentos, de uma perdida noite solitária na fazenda de um amigo de seu pai, na adolescência, à revolta paulista de 1932 –, que mobilizou, uma vez finalmente perpetrado, o choro de tanta gente do povo, foi-se definitivamente embora e não vale mais a pena exumar a este cadáver.
 Pelo que se deduz e se vê, afinal, o cadáver não é mais insepulto. Mas, se já não há mais presença ativa do mito, o resíduo, o espectro, a imagem fugidia, se foi? E se foi mesmo, em quais termos?

           Nietzsche – um autor que Getúlio apreciava na juventude –, num de seus disparos de dinamite – a segunda das “Considerações extemporâneas”, dedicada ao questionamento da historiografia acadêmica alemã do século XIX –, afirmava haver mais sabedoria no esquecimento do que na memória. Por insistir em retornar o incômodo passado, os historiadores são uns parvos e infelizes, além de estarem longe da sabedoria.
 Outro grande filósofo, Hegel, na sua “Filosofia da História” afirmava que a história, ao contrário do que todo mundo pensa a respeito, está distante de ser uma “mestra da vida”. Não existem lições exemplares a ensinar, por um simples motivo: cada época se encontra em circunstâncias tão peculiares, representam uma situação tão individual que os acontecimentos não se repetem, portanto, sempre são partícipes de distintas constelações. Para Hegel, antes dos fatos, o que se repetem na forma aparente dos grandes acontecimentos (prestem a atenção a esta expressão: na forma) são os processos, a essência, o conceito, que ele, idealista, chamava, nebulosamente, de objetivações do espírito absoluto.
A sabedoria reside em esquecer em vez de lembrar e a história não é mestra a vida? Talvez, quando realmente não é o caso de transformar a saga de Getúlio em um mito, um personagem ambíguo que tanto foi ditador-carniceiro como mártir voluntário das reformas sociais.

        Quem circula por países como a Argentina ou Venezuela conhece a força da onipresença das sombras de Perón e Bolívar, fontes de movimentos influentes como o peronismo e o bolivarianismo. Na Venezuela, há um retrato de Bolívar em cada escola, que Hugo Chávez espraiou a cada esquina. Na Argentina, embora os militares tenham se esforçado em varrer a memória de Perón do mapa, o reprimido em vingança retornou como se fosse um espectro eterno.

       Numa das passagens de “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro, em ressonância lockeana, afirma que o brasileiro é um povo “tábula rasa”, uma “página de papel em branco”. Por isso, ele, o povo, nós brasileiros, constituímos um povo aberto às novidades da modernidade, que aqui aportou sem carecer de passar por cima atropelando as tradições. Constituímos, neste aspecto, como os Estados Unidos ou a Austrália, uma “província branca”. O problema da “província branca” brasileira, reconhecido por Darcy, é que passamos de uma novidade a outra, deixando de consolidar um ethos social duradouro.
Seria o Brasil a terra dos sonhos de Nietzsche e Hegel? Os sábios exageram como método. Exorbitam das imagens para ver mais longe. Para esquecer, é preciso atravessar por dentro, extrair a fórceps os recalques, em processo penoso, e não simplesmente contornar, pois assim nos comportando estamos fadados a repetir.

         Esquecemos Getúlio Vargas com ou sem os recalques? Muitas vezes os recalques parecem desaparecer, mas retornam em surpreendentes e em inéditas configurações. Sem sossego, quando o assunto é a história brasileira, as questões mortas costumam reaparecer.

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