Quixotesco e maquiavélico
Fiz
este pequeno texto, “Quixotesco
e maquiavélico”, a Guisa de Apresentação do vigésimo número da
Revista Conceitos, cujo conteúdo completo em PDF pode ser acessado no link http://www.adufpb.org.br/site/wp-content/uploads/2014/09/REVISTA-CONCEITOS-20-2.pdf:
Quixotesco e maquiavélico
Jaldes Meneses
“Pois se observa no Evangelho que, curando Cristo de
todos os gêneros de enfermidades e ressuscitando todos os mortos, a nenhum
doido sarou”. Padre Antônio Vieira.
Aconteceu com as obras mais
conhecidas de Nicolau Maquiavel e Miguel de Cervantes – “O príncipe” e “Dom
Quixote” –, os criadores da teoria política e do romance modernos na distância
dos dois fabulosos séculos de nascimento da modernidade ocidental,
respectivamente 1513 e 1605 –, o fenômeno de se tornarem tão populares que
viraram adjetivos. Maquiavélico tornou-se sinônimo de pessoa astuta e diabólica
na luta pela conquista do poder, na qual não interessam quais os meios de
alcançar determinado fim, enquanto quixotesco virou símbolo de louco sonhador
de objetivos utópicos e inalcançáveis.
Parecem antônimos: o príncipe maquiavelino é autossuficiente, frio e
realista, por outro lado o cavaleiro de Cervantes é dependente de devaneios e
miragens inexistentes na realidade, feito o amor impossível de Dulcinea del
Toboso. Michelet, historiador romântico francês, dizia a respeito de Joana
D´Arc que o surpreendente na “donzela”, que logo se tornou heroína nacional
francesa, não era a loucura, mas o núcleo de lucidez que se escondia no
devaneio.
Um homem do renascimento como Maquiavel convivia com a loucura no mesmo
espaço, inclusive a elogiava preciso fosse – lembremo-nos de, a propósito, do
famoso elogio de Erasmo de Rotterdam, escrito na mesma época. Qual
loucura maior que não medir esforços para atingir determinado fim? No realismo
de meios e fins do príncipe se encontra acantonado a loucura, as lutas dinásticas
européias tão bem descritas por Shakespeare (Hamlet, Ricardo III, Macbeth) nada
mais são que a dramaturgia da teoria política maquiavélica.
A assepsia entre razão e desrazão era desconhecida no mundo de
Maquiavel. O ponto cirúrgico aconteceu exatamente no século seguinte, e o “Dom
Quixote” – a saga do cavaleiro andante deslocado do mundo – significa
exatamente um desses pontos de ruptura. Não é à toa que vinte e dois anos
depois de “Dom Quixote” (1637), Descartes brindava-nos com “O discurso do método”,
sancionando em definitivo, através do método científico racional-moderno, a
separação entre razão e desrazão, a mesma falsa assepsia da razão do trabalho
de sangue e poder do Príncipe que formou esta entidade conhecida por Estado
Nacional (“o mais frio e cruel dos monstros”, nas palavras de Nietzsche, o
mesmo Estado que as utopias de Marx, um dia, pensou em fazê-lo desaparecer).
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