Entre junho e outubro (1)
Jaldes Meneses
Mistura nova de Babel de afetos de amizade e tribuna política, as redes
sociais, exatamente por isso, podem ter, entre mil e uma utilidades, a
serventia de funcionar como uma espécie de rico laboratório a quem se dispor à
realizarum estudo sério do discurso como crítica à ideologia. A propósito,
nunca esteve tão atual a conhecida frase de Marx de que “o ser social determina
a consciência social”. A frase de Marx parece óbvia e ululante. Não é.
Uma das características do mecanismo da ideologia, ao qual ninguém escapa é
produzir um efeito de falso distanciamento entre os nossos valores e
julgamentos, tidos por nós mesmos como de luz e verdade, advindos de uma fina
consciência social crítica – a nossa, pois nunca erramos e sempre estamos
certos –, e os valores e julgamentos de nossos antagonistas, tidos como de
trevas e mentiras, todas elas advindas do charco de lama e falsa consciência
chamado – os “outros”.
Sejamos brutos ou refinados, doutores da Universidade ou pastores
fundamentalistas, o mecanismo nivelador da ideologia é brutal: toda consciência
social, sem exceção, remete ao ser social, às relações objetivas do mundo
vivido, até porque todo sujeito, relembrando a genial definição de homem de
Gramsci, contém na mesma cápsula indivíduo, sociedade e natureza. Somos o
eterno conflito de três em um. Por tudo isso, a conhecida frase solipisista de
Sartre “o inferno são outros” não passa de uma burrice filosófica. O inferno
somos nós.
Uma das ciladas mais sutis do mecanismo da ideologia reside em confundir
contradição e paradoxo. Tenho lido reiteradamente (o fato da reiteração, neste
caso, constitui o próprio núcleo duro da ideologia: “curtir” é reiterar) na
internet pessoas de boa fé lamentarem, perplexas, o aparente paradoxo de
milhões de brasileiros terem ido às ruas, em junho do ano passado, exigir
melhorias nas políticas sociais estatais de saúde, educação, segurança e
mobilidade urbana – objeto direto dos protestos –, associado ao desejo latente,
mas genérico, de reformar a política, ou, ao menos, dos costumes políticos
brasileiro, no entanto, o novo congresso eleito em outubro deste ano, ser mais
conservador que o anterior. Sem dúvida, figuras cavernosas da estripe de Kátia
Abreu (agronegócio), Jair Bolsonaro (extrema direita) e Marco Feliciano
(fundamentalismo religioso) sairam consagrados das urnas.
Investiu-se muito desejo em junho de 2014. Mas desejo irrompe desprovido de
signo ideológico à priori. Sempre que aconteceram grandes manifestações de
massas na modernidade, um desejo submerso vem à tona: alterar de baixo acima a
ordem social, fazer a revolução. O anseio de revolução não poderia deixar de se
fazer presente naqueles acontecimentos. Marx escreveu – um parentesis: Lévi-Strauss quando estava sem inspiração, punha-se a ler “O 18 de
Brumário” – que os revolucionários franceses do século XIX, na falta de
referências claras da sociedade do futuro, vestiam as vestes dos antigos
tribunos romanos. Da mesma maneira, uma parte da juventude e da esquerda
brasileira vestiu as vestes de Marx. Logo se intitulou aqueles acontecimentos
como “jornadas de junho”, da mesma maneira que Marx chamou 1848 na Europa.
As importantes manifestações de junho de 2014, evidentemente, não se
transformaram em “jornadas revolucionárias”. Por isso, em vez de revelar hoje
um paradoxo, aquelas manifestações ocorreram sob o signo permanente da
contradição, de maneira que é preciso compreender melhor o sentido profundo e
latente do processo, separar o joio do trigo, indagar quais classes, segmentos
de classes e atores políticos estiveram envolvidos naquelas formidáveis
manifestações de massas.
Na verdade, eis o segredo de polichinelo: as manifestações de junho do ano
passado foram uma explosão policlassista e multipolítica da sociedade civil
brasileira.
A contradição em processo. Embora
tenha sido a esquerda à esquerda do PT que começou o movimento (especialmente
movimentos autonomistas como o do Passe Livre), no apogeu daqueles
acontecimentos, exatamente no período das grandes manifestações de massas de
junho, na semana de 15 a 17 de junho, se incorporaram às ruas tanto a extrema
direita política (de que Bolsonaro é um legítimo fóssil) como a direita
religiosa fundamentalista (Marco Feliciano). Até mesmo o agronegócio (Katia
Abreu) compôs as massas de junho. Por isso, não surpreende que essas figuras
cavernosas tenham sido legitimadas com grandes – e previsíveis – votações nas
atuais eleições. Pode parecer estranho, mas essas exdrúxulas figuras, à sua
bizarra maneira, compunham a sinfonia polifônica das ruas de junho.
Uma nova geração da esquerda brasileira se surpreendeu em dividir as ruas
com a direita. Contudo, a direita dividiu as ruas com a esquerda em 1964.
Durante todo o processo de ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na
Alemanha, direita e esquerda não somente dividiam as ruas como militarizaram os
enfrentamentos. Cito uma instrutiva história pessoal: em seguida ao apogeu das
ruas em junho, já no refluxo de julho, encontrei uma militante de esquerda
“aliviada” por que “os coxinhas”, enfim, abandoram “o movimento”. Ideologia em
estado bruto, o depoimento da militante expõe mais impotência que potência,
mais Schopenhauer que Espinosa.
Por ser de caráter policlassista e multipolítico, os acontecimentos de
junho expuseram na rua, olho-no-olho, as transformações recentes da sociedade
brasileira, tanto as mais remotas, desde a edição do Plano Real (1993), como as
advindas da asensão do PT ao poder (2002). Sem dúvida, após a crise do Estado
desenvolvimentista havida nos anos 80, o Plano Real (FHC) e o Lulismo
reconstruiram as condições da hegemonia burguesa no Brasil. Vale observar que
não se trata de uma hegemonia burguesa clássica, mas a possível em uma formação
social – parafraseando Florestan Fernandes – no qual o processo de revolução
burguesa sem revolução e a modernização capitalista foi plamado pelo populismo
e finalizado por uma ditadura.
Nunca passou desapercedida a uma série de autores ilustres a sequência
bizarra das glórias nacionais – “as ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz
(superestrutura liberal e estrutura escravista) e a “razão dualista” de Chico
de Oliveira (desenvolvimento funcionalizando o subdesenvolvimento). Mesmo
assim, havia o lenitivo de as trocas simbólicas da “dialética da malandragem”
(Antonio Candido) ser bem recebida na Casa-Grande. Nos dias de hoje, para
desespero geral, a “dialética da malandragem” cedeu lugar à “dialética da
marginalidade”.
Passou-se a ter saudades do futuro que não houve no Brasil. Finalmente, a
“jaula de ferro” weberiana sentou praça definitiva entre nós e a nostalgia de
esquerda entrou em alta. Caetano Veloso afirmou certa feita que “o Brasil não
merece a bossa nova.”. Até mesmo a maior das glórias nacionais, o futebol, não
escapou, depois da ferida narcisica aberta após a derrota de 7 a 1 contra a
Alemanha.
Fecho a cortina do pretérito do futuro e pergunto objetivamente quais as
transformações ideológicas mais visíveis na sociedade brasileira de hoje: a)
recrudescimento do racismo; 2) aumento do fundamentalismo religioso; 3)
configuração de tipos alternativos de família e escolhas sexuais. Estas
questões estiveram presentes já nas eleições de 2010 e retornaram com força em
2014.
Continua na segunda parte, nos próximos dias
Continua na segunda parte, nos próximos dias
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