A trama inescapável da ideologia. Ideologia prática e ideologia crítica
(Trechos de um texto mais longo, escrito por mim, sobre a "questão da ideologia". Pode-se citar à vontade, desde que concedido o devido crédito à fonte).
Mistura nova de Babel de afetos de
amizade e tribuna política, as redes sociais, exatamente por isso, podem ter,
entre mil e uma utilidades, a serventia de funcionar como uma espécie de rico
laboratório a quem se dispor a realizar um estudo sério do discurso como
crítica à ideologia. Existe atualmente uma corrente da crítica social
neomarxista bastante festejada do conceito de ideologia na qual, pelo lado da
esquerda acadêmica, o superstar absoluto é o bufão esloveno Slavoj Zizek. No
caso específico de Zizek, a salada servida mistura mais Hegel e Lacan e menos
Marx stricto sensu, mais
especulação “dialética" da razão pura e menos consciencioso estudo
empírico da realidade, do qual o ambicioso projeto original da “crítica da
economia política” marxiano jamais se afastou. O próprio Zizek reconheceu em
inumeráveis entrevistas a sua incapacidade prática para a clínica
psicanalítica. Talvez na falta de clientes, resolveu partir para a teoria
social.
Jaldes
Meneses
Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homem-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? (…) Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído.
ANTONIO GRAMSCI, Cadernos do Cárcere 11 (1932-1933)
Que quis dizer com isso? O cerne do
programa teórico de Zizek, indecifrável para uns, divertido e irresponsável
para outros - capaz dos mais certeiros insights em crítica de cinema (2009) e
dos mais escabrosos veredictos em teoria política (2011) -, reside exatamente
em apanhar para análise especulativa as produções simbólicas da cultura de
massas, com especial atenção ao cinema - a nossa forma industrial enfim
descoberta de sonhar acordados -, buscando persuadir-nos que os automatismos da
linguagem (o senso comum, os chistes, os atos falhos, etc.) expõem e se abrem à
elucidação dos sintomas mais recônditos da alma.
Verdade
que subdivido, um tanto forçosamente, Zizek em livros e temas. Quem teve a
pachorra e lê-lo, sabe que ele é autor de um único e repetitivo manuscrito sem
fim nem começo, infinito onde for, circundo e espiralado. Por isso, se se
quiser chamar a este procedimento intelectual heterodoxo de “método”, ele está
sempre plagiando a si mesmo, repetindo sem pudor a autocópia de trechos
inteiros de um livro noutro.
Pode-se
questionar até onde se quiser os resultados espalhafatosos, à maneira
altissonante das superproduções da melhor “filosofia francesa” estruturalista e
pósestruturalista - sempre mais afeita a flertar com um Nietzsche de tipo
wagneriano que de tipo introspectivo mediterrâneo -, do projeto de crítica à
ideologia de Zizek. Contudo, reconheço que seus pressupostos básicos são
válidos, quais sejam: antes que na cultura erudita, é na cultura arcaica,
moderna e/ou pós-moderna de Hollywood, na plub fiction policial e de ficção
científica dos fanzines, entre outros, que podemos decifrar elementos do código
das aparências sociais. Na vida cotidiana do capitalismo avançado, a superfície
é profunda, essência e aparência mais parece um jogo de cabra cega do que
somente dimensões estanques de conteúdo e forma. Assim como na ficção do
cinema, podem ser as redes sociais e a política uma espécie de autocinema
plugado on line,
portanto instrumentos à mão para fazer a crítica da ideologia.
Por tudo
isso, a propósito, nunca esteve tão atual a conhecida frase de Marx, escrita
no“Prefácio à para a crítica da economia política” (2005: 52) de que “não
é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu
ser social que determina a consciência”. A frase de Marx parece óbvia e
ululante. Não é.
Ao
contrário do que pensou nos instituintes anos 80, período, sempre vale a pena
lembrar, de estertor da ditadura e de ascensão de um novo movimento de
socialização da política com base numa sociedade civil adensada, a filósofa
Marilena Chauí (2001) - para quem ideologia era sempre, única e exclusivamente,
a ideologia da classe dominante -, é impossível separar radicalmente, através
de um corte radical entre as duas atitudes, a ideologia prática da crítica
científica das formas da falsa consciência. As digressões de Marilena tinham
tudo a ver, de alguma maneira procurava explicar, o surgimento da figura
mitológica de Lula e a criação do PT, o primeiro pintado com as cores de uma
liderança operária verdadeira, vinda de baixo, e o segundo visto como uma
espécie de partido imanente (outra maneira de dizer não-ideológico) dos
trabalhadores, ao contrário dos partidos comunistas brasileiros, de esquerda
tradicional, vistos como portadores de uma ideologia de consciência de classe
(nos termos de Lênin Kautsky), a ser enxertada na cabeça dos trabalhadores de
fora para dentro (o assunto retornará adiante).
Nem
Marilena Chauí nem ninguém são seres de exceção. É-se possível haver partido de
ideologia nova, nunca partido não-ideológico. Exatamente porque uma das
características internas do mecanismo “tramático" (Deleuze e Guatttari
talvez dissessem: em redes rizomáticas) da ideologia, ao qual ninguém escapa,
muito menos o autor, é produzir em nós um efeito de falso distanciamento entre
os nossos valores e julgamentos, tidos por nós mesmos como de luz e verdade,
advindos de uma “refinada” consciência social crítica – a nossa, pois, para a
maioria de nós, nunca erramos e sempre estamos certos –, e os valores e
julgamentos de nossos antagonistas, tidos como de trevas e mentiras, todas elas
advindas do charco de lama, podridão e falsa consciência chamado – os “outros”.
A ideologia nos permite ter opinião, torcer por nosso time, falar mal do juiz
ou, quando for o caso, participar de batalhas campais entre torcidas
organizadas.
Sejamos
brutos ou refinados, doutores da Universidade ou pastores fundamentalistas, o
mecanismo nivelador da inescapável trama da ideologia é brutal: toda
consciência social, sem exceção, remete ao ser social, às relações objetivas do
mundo vivido, até porque todo sujeito, relembrando a genial definição de homem
de Gramsci, contém na mesma cápsula indivíduo, sociedade e natureza. Somos o
eterno e trágico conflito de três em um. Sempre é bom lembrar que enquanto
indivíduos sociais, somos, todos nós - parafraseando a primeira parte da
sentença de Gramsci em epígrafe -, conformistas de algum conformismo (1999:
94). Por tudo isso, a famosa tirada solipisista de Sartre “lénfer, cést
lés autres” (o inferno são os outros) não passa de uma burrice filosófica. O
inferno somos nós.
Por tudo
o que foi dito, seriam todas as ideologias iguais e a comparação entre elas
eternas prisioneiras na jaula do relativismo? Evidentemente que não. Gramsci
escreveu muitas vezes sobre a questão nos Cadernos do Cárcere, tomando por parâmetro o caso da
disputa (e também das incidências recíprocas) entre as duas mais influentes
ideologias na política, na economia, na filosofia e na história contemporâneas
- o marxismo e o liberalismo -, considerando-as "concepções integrais de
mundo”. Não se deve confundir o “conteúdo integral” das grandes concepções
laicas de mundo com integralismo religioso ou conservadorismo fascista, ambos
integrismos fechados. Vale observar que, no caso de Gramsci, “integral"
não remete simplesmente a “pensamento puro”, mas também a “estrutura” e
“superestrutura” materiais, ou seja, a disputa entre liberalismo e marxismo
significa mais que um capítulo da história das ideias, mas também um capítulo
da história de relações de força entre sociedade civil e Estado.
Parece-me
que seja o caso de postular como projeto a possibilidade contraditória de um
“integrismo aberto”. Ou seja, um integrismo que visa alçar à condição de
possuir tanto uma dimensão prática como uma dimensão crítica, esta última nada
mais nada menos que a capacidade de “criticar a própria concepção de mundo”. Por motivo de criticar os outros, mas
principalmente a si mesmo, a ideologia, de bruta e fechada, prática e empírica,
pode – continuando prática - transformar-se em integral e aberta,
possibilitando "torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto
atingido pelo pensamento mundial mais evoluído” (Gramsci, 1999).
A
dimensão prática da ideologia, sem mais, apenas consegue alçar ao momento
perceptivo de positividade. Embora trama inescapável de regência da vida
cotidiana, ideologia prática, destituída de senso crítico, é ideologia pela
metade, senso comum. A ideologia só pode se constituir em concepção integral de
mundo, enfim, se privilegiar, pelo lado avesso do positivo, o momento negativo
-, criticar os outros e principalmente a si mesmo.
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