A história se abriu em Cuba
Jaldes Meneses
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A partir da semana passada, a história do século XXI começou a se abrir em Cuba. Nunca defendi Cuba com base no pobre argumento, às vezes sincero, outras vezes hipócrita, do escritor Fernando Morais, repetido ad nauseam por outros defensores: aquele que ao contrário dos demais países latino-americanos, toda noite as crianças vão dormir bem-alimentadas e agasalhadas na Ilha. Repórteres e biógrafos dificilmente conhecem Marx - um autor muito citado, pouco lido e menos entendido ainda, até por marxistas.
A gente não quer só comida, versejava Arnaldo Antunes em meus tempos de juventude perdida. Em Marx, ao contrário do que se pensa o marxismo vulgar, o grande valor da sociedade regulada (a bela expressão de Gramsci para designar o comunismo) é a liberdade e não a igualdade. Quem se der à pachorra de ler com atenção a “Crítica ao programa de Gotha”, uma obra clássica para entender o socialismo e o comunismo em Marx, perceberá que o nosso autor escarneceu o culto puro e simples à igualdade como uma deriva jacobina e apego a uma máxima niveladora do direito burguês - o conhecido bordão de que “quem não trabalha não come”. Em termos de comunismo, a igualdade, sem dúvida, mas também no máximo, viria a ser uma precondição necessária.
Enrico Berlinguer, histórico dirigente comunista italiano, formulou certa feita, em ato de coragem, numa reunião cujo palco era Moscou que a “democracia é um valor histórico-universal”. O saudoso Carlos Nelson Coutinho repetiu esse bordão no Brasil, visando formular uma nova estratégia da revolução brasileira, neste caso, uma revolução processual. Iria mais longe. Deve-se reconhecer o valor histórico-universal da democracia, mas conjugar esse reconhecimento, desde sempre, atado ao valor histórico universal da liberdade. Esse o umbral que a esquerda precisa transpor em termos de projeto emancipatório. Não se trata mais, como se pensou nas experiências do socialismo do século XX, de construir uma longa transição do reino da necessidade ao da liberdade, mas de construir a passagem da liberdade, se possível for, nos mesmos processos em que nos liberamos da necessidade.
Parece um caminho difícil, mas, quais os resultados do “atalho” tomado no século XX? Posso dizê-lo: estive recentemente em uma palestra na UFPB com o competente sociólogo Armando Boito. Arguindo os esquemas estratégicos de Lênin em “Duas táticas” (um livro de 1905), Boito lembrou que toda revolução tem “duas etapas”. O problema histórico é que ficamos sabendo depois que toda revolução tem três etapas em vez de duas - do socialismo ao capitalismo.
O romance que mais me tocou os últimos anos - tanto quanto “Guerra e paz” de Tolstói - trata-se de “O homem que amava os cachorros”, do cubano Leonardo Padura. O romance de Padura desenvolve-se em três planos narrativos entrecortados da história do século XX - a saga e o martírio do revolucionário Leon Trotsky; a formação de um assassino pelo stalinismo, Ramón Mercader, recrutado na Guerra Civil Espanhola, formado como espião na NKVD (depois KGB), enviado numa missão especial ao México, até, enfim, ser preso, liberto e - conta a lenda, pois a história nunca se confirmou - padecer seus dias finais em Cuba; e a vida comum do narrador em Havana, o escritor sem perspectivas Iván Cárdenas Maturell. Para mim, a melhor passagem do romance - conquanto Trotsky e Mercader sejam épicos fascinantes -, ocorre na adiantada página 422, no diálogo impotente entre Iván e um colega escritor mais jovem, Daniel (Dany), exatamente no Porto de Mariel.
Estávamos numa tarde de 1994 em Havana, na vigência do “período especial” cubano - a fase da revolução após o fim da URSS, que deixou Cuba desprovida de parceiros estatais de ajuda. Premido pela escassez de alimentos e a uma pressão agônica, o regime liberou por uma tarde as fronteiras. Milhares improvisaram balsas e se jogou no mar rumo a Miami. Desolado e desconsolado, um Iván que ficou na Ilha diz a Dany: "É mais complicado que a fome, Dany. Perderam a fé e fogem. É bíblico, é um êxodo bíblico”.
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