O neoliberalismo de Dilma
Jaldes Meneses
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Não adianta dourar a pílula: o programa econômico do segundo governo Dilma, sob o comando do ministro Joaquim Levy (cortes de gastos e investimentos públicos, aumento da arrecadação, política antiinflacionária baseada em juros altos, etc.), será neoliberal, tanto quanto foi neoliberal a administração de Antonio Palocci e Henrique Meireles na primeira fase do governo Lula (2003-2005). Certamente, nos casos de Dilma e Lula, o neoliberalismo vem a ser mais de necessidade que de convicção.
Parece paradoxal, um país que amanheceu das urnas tão dividido politicamente entre esquerda e direita - Maria do Rosário e Jair Bolsonaro, Comissão da Verdade e Saudosos da Ditadura -, mas economicamente nem tanto: caso tivesse sido eleito, as medidas de política econômica de Aécio Neves seriam idênticas - repito: idênticas - às de Dilma. Joaquim Levy e Armínio Fraga são as faces do mesmo segredo de polichinelo. Companheiros de causa e geração, frequentam os seminários das mesmas escolas (IBRE-FGV, PUC-RIO, Casas das Garças). A partir das afinidades eletivas, compuseram, nos anos recentíssimos, um diagnóstico crítico comum sobre os impasses da chamada “nova matriz macroeconômica”, implementada pelo ministro Guido Mantega.
Continuando na esfera dos paradoxos. Mantega foi o ministro da fazenda brasileiro que mais tempo durou no cargo exatamente por que sempre foi frágil politicamente. Que quero afirmar? A “nova matriz” sempre foi mais de Dilma que de Mantega, que estudou economia com afinco, contudo - até fisionomicamente -, assemelha-se a um simpático boneco de ventríloquo. Alguns gargalham. Outros choram. À maneira do trabalho de Sífiso com a pedra, mal comparando, o Dilma II está chegando, em termos de política econômica, para desmanchar o trabalho do Dilma I. É-se possível explicar tanta contradição em processo?
O principal dos labirintos da contradição: a esquerda marxista clássica não tem a oferecer um programa econômico de administração do capital. Como se sabe, Marx pensava alto, empenhou-se em oferecer ao mundo uma crítica do modo de produção capitalista, nunca as migalhas de um programa de governo. Ou seja, embora muitas das formulações de Marx sobre a dinâmica do capitalismo tenham sido aproveitadas por economistas heterodoxos como Kalecki e Celso Furtado, por outro lado, a crítica do valor-trabalho e da mercadoria jamais - exatamente por situar-se no universo da crítica - transpôs o limiar do projeto à vida bandida.
Quando chega ao governo, ao perguntar “o que fazer?”, quase sempre a esquerda recorre à matriz do pensamento keynesiano. A “nova matriz macroeconômica” continha uma indisfarçável filiação heterodoxa neokeynesiana. Sem dúvida, as políticas anticíclicas neokeynesianas de combate à crise econômica capitalista de 2008 - desonerações seletivas de impostos, estímulo ao crédito, política de salários, etc. - deram certo no segundo governo Lula (2007-2010). Tanto que alguns autores chegaram a vislumbrar a consolidação da hegemonia do lulismo no Brasil, até o ponto de André Singer (autor de “Os sentidos do lulismo"), num devaneio máximo, prever a inauguração de um ciclo de prosperidade - o “New Deal” brasileiro.
Embaralhou-se conjuntura (políticas anticíclicas) e longa duração (nova matriz). Por confundir ciclo e longa duração, quando entrou areia no motor da “nova matriz”, a tentativa dilmista se viu na hora da amargura. Para haver uma nova matriz econômica de longo prazo, precisa haver um novo pacto político. Não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ora, como a matriz se afirmou como o suporte tecnocrático de uma estratégia de mudanças sem rupturas, na qual quase todos ganhavam, quando as condições nacionais e internacionais do ciclo se exauriram, a nova matriz se perdeu no espaço. Esqueceu-se que o auge de longa duração do keynesianismo deu-se em um momento específico do pós-guerra, quando os Estados tinham nas mãos os instrumentos de controle cambial dos fluxos de capitais, muito diferente da desregulamentação dos mercados financeiros. Hoje, o dinheiro dorme em São Paulo e amanhece em Kuala Lumpur. Eis configurados, portanto, os ingredientes de um fracasso anunciado: regulação macroeconômica a partir de uma matriz nacional em contraste à desregulamentação global dos mercados financeiros. A vida também não é fácil para a esquerda que não quebra os ovos.
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