Sob o signo de Celso Furtado


Artigo publicado no jornal A UNIÃO de hoje (09/12), alusivo à reunião dos governadores do Nordeste em João Pessoa (PB)

Jaldes Meneses


Está longe de ser um veredicto hiperbólico considerar a reunião de governadores eleitos do nordeste, realizada hoje em João Pessoa, de acontecimento histórico.

Vale à pena recordar que primeira grande articulação desenvolvimentista de governadores do nordeste deu-se em 1958, sob os auspícios do paraibano Celso Furtado. Lê-se nas páginas do segundo volume livro de memórias de Celso, “A fantasia desfeita”, a navegação venturosa de quando e como ele imaginou a SUDENE e encontrou sérias resistências nas oligarquias regionais. Essas oligarquias atadas ao passado eram poderosas, dominavam a representação política das bancadas federais e de senadores do Congresso Nacional, quase toda disposta a apresentar o veto à criação da SUDENE. Por outro lado, foi exatamente a partir do apoio dos governadores e, por incrível que pareça, da colaboração da imprensa do Sudeste do país (que apoiou a bandeira motivada pelo argumento de inibir a migração de nordestinos), que Celso, os governadores e o ex-presidente Juscelino Kubitschek conseguiram a vitória. Começava assim o processo político e econômico de modernização do nordeste, não interrompido pela ditadura de 1964, embora, desde o golpe, tenha adquirido a feição dominante de conservadora. 

Ontem e hoje, seja nos tempos de revolução passiva da “Era Vargas”ou do "Lulismo", o motivo da simpatia da maioria dos governadores às causas da modernidade e do desenvolvimento é relativamente simples de ser explicado: os governadores são eleitos majoritariamente, precisa apresentar resultados a eleitores de todo o território do Estado. Por outro lado, muitas vezes, as representações parlamentares são paroquiais. Por isso, as bancadas estaduais, no distorcido federalismo brasileiro, são úteis e funcionais ao jogo de barganhas fragmentadas do presidencialismo de coalizão vigente nos corredores de Brasília - uma estrada vicinal, uma quadra esportiva, uma ponte, uma creche, etc. -, reivindicações justas, mas desprovidas de escala.

Existe farta literatura na área de ciência política a respeito da realidade de que desde o malogro dos Bancos Estaduais e da edição, em maio de 1993, do Plano Real, que os governadores viram reduzidos o seu poder na federação brasileira, em benefício da centralização federativa na União. Se houve erros na condição da política dos governadores entre o fim da ditadura e a rápida passagem de Itamar Franco - principalmente no uso inflacionário e fisiológico dos Bancos Estaduais - não é o caso de jogar o bebê com a água suja do banho. Principalmente no caso do Nordeste, é chegada à hora de os governadores voltarem a ter uma voz articulada, em bloco, que permita pensar a região nordestina como um ente único de forças produtivas, uma cadeia econômica comum para além das divisas estaduais, muitas vezes formais - por exemplo, é-se possível pensar o desenvolvimento do litoral sul paraibano desarticulado do litoral norte pernambucano? Evidentemente que não. 

As presidências de Lula e Dilma, no plano federal, mudaram a região, cujas taxas anuais de crescimento econômico hoje são superiores às do Brasil. O crescimento econômico coincidiu com o fato das eleições de uma nova safra de governadores progressistas, entre os quais podemos citar o exemplo de Ricardo Coutinho. Encerramos um ciclo político e começamos outro: pela via do sufrágio eletrônico universal, o conteúdo da composição do voto nos grandes centros urbanos foi se aproximando e engolfando o mundo rural. Uniformizamos mais nossas escolhas e preferências, as oscilações de opinião pública e os movimentos de sociedade civil começaram a sobrepujar em definitivo as estruturas atávicas do patrimonialismo, este persistente rebento originário do regime familiar da economia política patriarcal narrada por Gilberto Freyre em "Casa Grande&Senzala””.

Podem-se fazer as críticas (a crítica trata-se de uma necessidade estrutural da democracia, seja antiga ou moderna) que se quiser aos atuais governantes do nordeste, mas, indubitavelmente, renovaram-se as caras das nossas principais lideranças políticas, alterando-se por inteiro a cartografia política regional: praticamente nenhum desses novos governadores foi eleito sob o cabresto do velho patrimonialismo de origem patriarcal, isto na região brasileira em que ele ainda constitui um dos núcleos da cultura política. Em definitivo, o capitalismo e seus conflitos (capital, trabalho e cidadania) chegou e desembarcou na política nordestina. Sejam bem-vindos à Paraíba e bom trabalho, senhores governadores!

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