A civilização do Charlie Hebdo



Jaldes Meneses
email: jaldesm@uol.com.br

Existe uma modernidade islâmica? Ou os povos do oriente próximo (como se dizia no século XIX, nos tempos de vigência do colonialismo inglês), estão condenados, no máximo, a uma modalidade especial de modernização sem modernidade, uma importação da tecnologia ocidental sem tradução nos modos de cultura e urbanidade? A indagação sempre aparece quando uma desses terroristas de uma organização fundamentalista - especialmente a Al-Qaeda - explode uma embaixada (Quênia e Tanzânia), um shopping centrer (Quênia), uma estação do metrô (Londres e Madri) ou, o mais famoso de todos os atos criminosos, verdadeiro divisor de águas histórico - o atentado cometido no dia 11 de setembro por um avião sequestrado às torres gêmeas do World Trade Center, nas aprazíveis ruas de Battery Park, à beira do Rio Hudson, o melhor lugar para se viver e caminhar no mundo. A pergunta retornou com força a partir de ontem, quando três jovens invadiram a sede do jornal satírico francês Charlie Hebdo, ceifando a vida de 12 pessoas, entre os quais quatro dos mais importantes cartunistas da pátria de Voltaire - que, para mim, nem é precisamente a circunscrição do território francês, mas a tradição iluminista. Nem todo francês, no presente ou no passado, compartilha dessa tradição
No entender de Samuel Huntington, o teórico do “choque das civilizações” - um dos principais matizes do pensamento geopolítico contemporâneo -, a resposta é tão direta quanto incisiva: a tese da possibilidade de uma civilização compartilhada de valores universais não passa de um perigoso ilusionismo iluminista, um trunque do liberalismo libertário e do socialismo social-democrático ou comunista. Ainda mais (cito Huntington): "a sobrevivência do Ocidente depende de os norte-americanos reafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem que sua civilização é singular e não universal.”
Na verdade, sucede o seguinte: o fundamentalismo de um se alimenta da exorbitação da diferença, e do medo e do ódio pelo outro, destilado pelo fundamentalismo alheio. Pensar o monopólio do fundamentalismo como característica intrínseca e exclusiva do Islã não passa de uma interpelação ideológica: criar uma figura fantasmagórica na qual se possa bater desprovido de questionamento crítico. Para Al-Queda crescer é preciso, na mesma proporção, que se eleve o preconceito ao migrante estrangeiro, ou os filhos de segunda e até terceira geração, da parte das correntes chauvinistas da Europa ou dos Estados Unidos. 
Neste sentido, é preciso saber qual o conteúdo do movimento de massas que certamente ocupará as ruas de toda a França, especialmente Paris, em repúdio à tragédia de ontem. Existe um precedente perigoso: quando do repúdio aos acontecimentos do Word Trade Center, no primeiro momento, a tônica dominante foi patriótica e conservadora, resgatando do fundo do baú as correntes mais atávicas e profundas do conservadorismo norte-americano. Resultado: em seguida, os Estados Unidos embarcaram nas aventuras do Afeganistão e o Iraque. Diferente, no entanto, foi a reação dos espanhóis quando da explosão do metrô de Madrid em 2004 - naquele episódio, em registro inverso, os cidadãos repudiaram o engajamento do Estado espanhol na guerra do Iraque, em seguida apeando do poder o Partido Popular, fiador da estratégica reacionária. 
Principalmente os cidadãos franceses precisam do uso da faculdade ilustrada do discernimento. Há duas possibilidades do movimento de massas. Ele será dominado por corrente que postulam o fechamento das fronteiras ao estrangeiro e o ódio à cultura árabe e muçulmana - Marine Le Pen e a Frente Nacional estão à espreita para cumprir este papel. Ou dobra-se a aposta do Charlie Hebdo, especialmente a aposta do cartunista Charb, diretor de redação do jornal: assestar o gume da crítica, indistintamente, a toda manifestação de fundamentalismo ou chauvinismo, venha de onde vier, qualquer que seja a religião, ideologia ou cultura. Apostar na civilização universal do Charlie Hebdo.
Comecei o artigo indagado da possibilidade de uma modernidade universalista no Islã. Se concebermos modernidade como uma racionalidade e não simplesmente o processo histórico de expansão do ocidente, que começou por volta de 1500, várias modernidades alternativas são possíveis. Reconheço que, através de um intrincado processo histórico - inclusive com o auxílio decisivo das potências coloniais do ocidente - a modernidade iluminista truncou no oriente médio. Contudo, neste caso, em vez de mimetizar as práticas do fundamentalismo islâmico, deve-se, ao contrário, apoiar as tendências soterradas de igualdade e liberdade internas ao próprio Islã.



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