A direita gramsciana brasileira



Jaldes Meneses
email: jaldesm@uol.com.br

Tanto provinciano como cosmopolita, Osvaldo Aranha, entre tantas peripécias, conspirador gaúcho do grupo castilhista de Getúlio Vargas - que de tanto conspirar fez a revolução de 1930 brasileira -, e presidente da sessão da ONU de criação do Estado de Israel em 1948, costumava dizer que “no Brasil as ideias costumam demorar a passar na alfândega”. Sempre me lembro dessa frase quando converso com pessoas ditas politizadas – até, em alguns casos, acadêmicos da área de política –, no entanto absolutamente ignorantes da existência de uma escola densa de pensamento conservador moderno, criada no século XVIII por autores distintos, em contestação ao processo da revolução francesa, mas no qual ressalto o pensamento estratégico de Edmund Burke. Pensa-se que direita significa apenas o pensamento caricatural e zoológico de Jair Bolsonaro, ou o conservadorismo cinge-se aos punhos de renda do neoliberalismo dilmista de Joaquim Levy.

Quiséramos nós, à esquerda, que assim fosse. Mas não é. Este desconhecimento do conservadorismo releva tanto o baixo nível de nosso decadente ensino universitário como o tipo de pensamento ideológico preguiçoso que prospera nos principais arraiais da esquerda brasileira. Principalmente, diz respeito ao tipo superficial, epidérmico mesmo, de hegemonia que se consolidou no domínio de doze anos - e mais quatro vindouros - dos governos do PT no poder. A hegemonia superficial, às vezes autossuficiente, costuma reparar mais a construção das relações de forças nos escaninhos da jogatina parlamentar do que nas gôndolas das livrarias, traçando para si mesmo, por isso mesmo, no futuro, o melhor caminho da derrota e da irrelevância.

Impossível ser hegemônico desconhecendo por dentro e em profundidade o pensamento que se pretende criticar. Para a esquerda começar a encetar a crítica do novo conservadorismo brasileiro, talvez seja o caso de começar sabendo que dos pensadores clássicos da tradição marxista - cujos mais ilustres em minha galeria particular considero Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Gramsci e Lukács -, sem dúvida Gramsci  nos “Cadernos do Cárcere" - especialmente nas anotações de contestação às teoria das elites de Mosca, Michels e Pareto - foi aquele mais empenhado em realizar a crítica mais sistemática do pensamento conservador. De tão consistente essa crítica de Gramsci que seus meios e estratégias de luta ideológica podem ser usados, em sinal trocado e de maneira introversa, pelo próprio objeto criticado - em vez de da esquerda contra a direita, da direita contra a esquerda.

Cito três colunistas semanais do jornal “Folha de S. Paulo” e da Editora Abril, também ocupantes privilegiados nas gôndolas das livrarias neste Brasil de 2015, que constituem, por assim dizer, uma santíssima trindade brasileira de "gramscianos de direita” - Reinaldo Azevedo, João Pereira Coutinho (este, um português residente em Lisboa) e Luiz Felipe Pondé. Observo que esta santíssima trindade tem origens intelectuais diferentes - o conservadorismo iluminista (inglês) de Reinaldo e Coutinho difere do irracionalismo trágico de Pondé. Contudo, em que pese as distinções, a estratégia de ação intelectual é praticamente igual. 

Pode-se ser gramsciano pelo menos de duas maneiras. A primeira, canônica, cuidando de ser um discípulo ou um hermeneuta do pensador italiano. Obviamente, este não é o caso dos três referidos publicistas conservadores. Embora haja leituras conflitantes de Gramsci de A a Z, do PSDB ao PSTU, de liberais a stalinistas, neste caso, via-de-regra está-se reivindicando a uma interpretação da matriz. Por outro lado, minha remissão à possibilidade de um aproveitamento à direita de Gramsci tem uma conotação totalmente diversa, nem tão inusitada assim. 

Deixem-me citar o mais extremo dos exemplos. Se me permitem a licença, ao seu modo, Hitler também pode ser considerado um gramsciano de direita, nem talvez possa ser diferente no ocidente contemporâneo no século XX, de sociedade civil complexa e Estado ampliado, a quem quiser conquistar hegemonia cultural e poder político. Como se sabe, em estratégia militar, guerra de posição significa enfrentamento direto, corpo a corpo; por seu turno, guerra de posição significa cavar trincheiras, criar instituições e realizar o embate cultural na sociedade civil visando conquistar a hegemonia.  

Em que termos Hitler aplicou a estratégia gramsciana de guerra de posição - a longa jornada pelas insituições? Contarei a história em rápidas pinceladas. No começo, em 1923 na Baviera, o ex-cabo do exército alemão na primeira guerra tentou um putsch, um assalto direito e catastrófico ao poder (exatamente a estratégia da esquerda alemã nas revoluções de 1918 e de Lênin na revolução russa de 1917, distinta portanto da longa jornada da guerra de posição). Acabou por se dar mal. Amargou a prisão e mudou a estratégia. Tanto que a 30 de janeiro de 1933, o líder nazista prestou juramento oficial no parlamento na condição, jamais de um golpista, mas de Chanceler constitucional da República da Alemanha. O resto da história não preciso contar. Para chegar ao poder, Hitler nada mais fez, na sociedade civil e no Estado, que luta ideológica e guerra de posição (guerra prolongada de trincheiras), nos termos da nomenclatura gramsciana. 

Os três publicistas - Reinaldo, Coutinho e Pondé - detestam Gramsci, a quem alcunham, a partir da tênue “prova” de uma única citação, a pecha de pensador totalitário (prometo voltar a este tópico em coluna futura). De caso pensado, contudo, pois conhecem o suficiente (embora nem tanto) o autor italiano para executar uma dura luta ideológica no curso de uma estratégia de guerra de posição - tentar desconstruir as flácidas bases culturais do desenvolvimentismo lulista e o capitalismo de Estado dos governos do PT. 



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