Já li de tudo
Artigo publicado hoje em colunas no jornal A UNIÃO e no Portal WSCOM
Jaldes Meneses
Escritor de origem árabe-palestina e cristã formado nos Estados Unidos na melhor escola de interpretação literária de um mundo erudito em extinção na cultura ocidental - a escola humanista alemã de interpretação de textos de Erich Auerbach, Leo Spitzer e Robert Curtius -, o crítico literário Edward Said, autor de “Orientalismo”, um livro clássico para entender nós e eles, faz um afirmação desconsolada no prefácio à edição de 2003 do livro (época da ocupação militar de George W. Bush no Iraque e por triste coincidência ano de sua morte). Vale lembrar que o livro foi originalmente publicado em 1978; portanto, bem antes daquela guerra.
Para Said, a ciência política e a história praticada pela maioria de autores do mainstream norte-americano especializados em oriente, como Bernard Lewis e Fouad Ajami - eu acrescentaria a estratégia geopolítica do “choque de civilizações" de Samuel Huntington -, mercenários a soldo do departamento de Estado na tarefa de formar a “opinião pública", nada mais revelam que uma perversão que a velocidade de nossa cultura, inclusive a universitária, impõe na interpretação dos fatos. Em lugar de uma silenciosa, demorada e empática penetração na cultura objeto de estudo- que incluiria no caso o estudo do árabe e do persa -, ou se possível, até a vivência direta, adota-se um método de recursos às fontes indiretas, em geral advindas da literatura colonialista inglesa e francesa do século XIX. Sucede assim que a literatura de hoje repete a pregressa, quando foi criado o espantalho perigoso e fantasioso chamado “oriente”.
Esse nosso “oriente" criado pelos intelectuais ajudou a criar uma contrapartida em termos de cultura popular que se tornou senso comum: o mundo muçulmano sempre foi misógino e perseguidor de mulheres e a religião de Alá não passa de um valhacouto de fanáticos. Perdeu-se por completo a percepção que as origens fundamentais das três religiões monoteístas (o judaísmo, o cristianismo e o Ilsã), em que pese às diferenças, são as mesmas. Ainda mais: perdeu-se o dado remoto que a própria ideia que a revelação de um Deus único por um profeta muitas vezes deu asas à criação de nichos fundamentalistas nas três religiões - ou seja, também podemos ser fundamentalistas.
Umas das predileções do nosso oriente ideológico é o uso e abuso do anacronismo histórico. Já li de tudo. O mais raso deles localiza a origem do conflito contemporâneo, em pleno século XXI, nas guerras médicas de gregos e persas (século V a.C). Como assim, se naquele tempo não havia “ocidente”, “oriente” e ainda estava distante séculos de acontecer a ascensão das tradições monoteístas do cristianismo e do Islã, derruindo as tradições dos deuses pagãos gregos e do zoroastrismo persa? Ao menos a ignorância é ecumênica, a sequência de anacronismos envolve tanto os defensores como os críticos da ideia de “choque de civilizações”.
Por favor, parem de confundir Jihad Islâmica com Nacionalismo Árabe, Baath com Al Qaeda, Bashar al-Assad com Estado Islâmico (Isis). Não perceberam que estão em guerra a Síria - um dos últimos Estados remanescentes, neste caso, pervertido, do projeto do nacionalismo autóctone - e o Califado Islâmico - relançando um projeto medievalista em pleno século XXI -, e exatamente por isso é impossível a essas correntes a formação de uma “frente única” contra as potências ocidentais? Parece o samba do crioulo doido - a expressão politicamente incorreta é do humorista Sérgio Porto (talvez hoje estivesse correndo risco de vida). Já vi fotos da revolução argelina de 1962 justificando Osama Bin Laden, gente dizendo que a dinastia Saud (Arábia Saudita) financia a Al-Qaeda, quando sabe-se que ele é um trânsfuga renegado da aristocracia saudita (aí é demais).
O maior de todos os equívocos, contudo, não acantonam nas metáforas cheias da graça involuntária de um samba do criolo doido. Mas na apreensão de conceitos e valores. Reside exatamente na crítica à existência de um pseudo vírus “etnocentrista” e imperialista na tradição do pensamento iluminista. Reprisando o bordão de Hannah Arendt em “Origens do totalitarismo”, os fundamentos remotos do imperialismo, do antissemitismo e do totalitarismo são o romantismo (na versão direitista e nacionalista), o pensamento conservador e a versão seletiva a que o darwinismo social de Francis Galton submeteu o pensamento do primo, Charles Darwin. Vasculhem a biblioteca de Cecil Rhodes (negocista imperialista britânico, racista) e verifiquem suas leituras prediletas. Lá não encontrarão Montaigne, Voltaire ou Rousseau, nem a “Bíblia” do colonizador era a “declaração dos direitos do homem”. Todas essas miragens do “etnocentrismo iluminista" são "produto de primário mal feito “ (parafraseando outro perigoso humorista, José Simão) que a formação universitária douta amplia em papers e seminários, até aportar nos posts das torcidas organizadas de internet.
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