Em 15 segundos, a vastidão rosiana de um impasse

Jaldes Meneses
email: jaldesm@uol.com.br

Por um desses acasos do destino, tive a ventura ou o sortilégio de uma formação intelectual juvenil torta (por conter muito de autodidatismo) e atípica, mais num partido comunista - o PCdoB, no qual militei por 15 anos - que nos bancos formais da universidade, onde mais flanei no movimento estudantil que propriamente nas carteiras de madeira das salas de aulas. Gorki chamaria de uma formação na universidade da vida. Mudei muito intelectualmente desde a época, por assim dizer, das “primeiras letras”, depois tive a oportunidade complementar, e de alguma maneira superar, muito da formação ainda dogmática oferecida ao militante comunista entre o final dos anos 70 e toda a década de 80. 

Devo logo afirmar que nunca cuspi no prato que comi. Ou seja, não me tornei um desses ex-militantes da causa comunista que renegam o passado com a mesma fúria religiosa antes devotada à velha organização. No fundo de suas almas, esses camaradas continuam os mesmos, apenas estão servindo a dogmas diferentes, num balancê que cruzou da esquerda à direita. De minha parte, não aderi a dogmas liberais, continuo comunista, hoje sem partido. Gosto muito, e acho graça, de me definir como um “comunista alienígena” porque insisto em estudar e refletir assuntos que estão fora da pauta e dos interesses imediatos da maioria das organizações da esquerda brasileira. 

Por exemplo, estudo especulativamente a questão do comunismo. Praticamente não vejo hoje no Brasil um debate antidogmático entre as organizações de esquerda - afora seletos grupos regionais dispersos - que afrontem a questão. Em geral, preferem responder à questão da necessidade de ter claro hoje quais os contornos de uma futura sociedade comunista com o chavão que Marx, em virtude do conteúdo antiutópico de sua teoria, ter tido o cuidado de não formular um projeto “ideal" de sociedade à maneira dos falanstérios do genial maluco beleza chamado Charles Fourier. A virtude, em Marx, tornou-se a preguiça mental de certos de seus pseudo herdeiros, de boca torta pelo uso do cachimbo.

Permitam-me o cabotinismo de pôr entre aspas a mim mesmo. Costumo dizer em sala de aula que o primeiro axioma de um projeto autenticamente socialista ou comunista no século XXI é reconhecer que “ninguém mais vai aceitar um cheque em branco.” A questão é séria. Quando Lênin, em 1917, cruzou a fronteira da Alemanha, chegou à Estação Finlândia e logo surpreendeu os próprios companheiros de Partido ao formular uma nova estratégia - romper com o governo provisório instaurado em fevereiro e entregar o poder aos sovietes -, de alguma maneira estava pedindo um cheque em branco. Não havia experiência socialista concreta em que se basear - a não ser a fugaz experiência da Comuna de Paris (1871). Tudo haveria de ser criado dali para frente.

No século XXI, no mesmo processo de se criar para frente, deve-se também rever para trás, pois a grande saga histórica do século passado foi exatamente a tentativa de construir a chamada “sociedade do futuro” que Marx teve parcimônia em descrever. Para criar em novos termos, temos uma espécie de “volume morte” a ultrapassar: alguém, em sã consciência, ousaria negar que as duas principais experiências do socialismo no século XX tiveram resultados trágicos? Quais os resultados das duas principais tentativas de construção do socialismo? A URSS explodiu por dentro, acossada pelas contradições políticas e econômicas do poder burocrático, e a China explodiu para fora, como capitalismo. Nenhum programa de esquerda pode mais contornar, sob pena de enganar a si mesmo – ledo engano pensar que engana os demais circunstantes "companheiros de viagem" –, os áridos temas postos pela complexa história do século XX.

Pode parecer aos incautos que diviso o mundo em paragens de alta especulação idealista. Nada disso. Esses temas têm interesse prático, me considero um sujeito prático em política. A quem duvida encerro o artigo narrando um fragmento pessoal. Estava em casa assistindo, por dever de ofício, o guia de TV das eleições presidenciais de 2014, quando me aparece na tela o programa eleitoral do PCB, em cujo candidato, Mauro Iasi, até votei em primeiro turno (no segundo, votei em Dilma). 

Vamos ao fragmento: em 15 segundos, o PCB revelou todo o impasse histórico (o volume morto) do qual é legatário, para o bem e também para o mal. Antes de o do Partido candidato falar, abria o programa pequenas animações. Numa dessas, escolheu-se a conhecida referência de exploração capitalista denunciada por Chaplin em “Tempos modernos” - a figura do operário de macacão escuro numa linha de montagem fordista. A imagem é ajustada, contudo insuficiente, por dois motivos: 1) a exploração capitalista não é exclusivamente fordista, explodiu para a rua, ou seja, a propaganda, para ser eficaz, não deve ser dirigida apenas ao operário de macacão, mas, entre tantos trabalhadores de tantas ocupações - inclusive intelectuais -, por exemplo, aos jovens explorados do telemarketing; 2) pior, foi exatamente nas malhas da exploração fordista mais intensiva que se construiu a experiência, enfim malograda, da União Soviética. 

Em 15 segundos, a vastidão rosiana de um impasse… 

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