Parabéns, Eduardo Cunha


Jaldes Meneses


Parabéns ao deputado Eduardo Cunha - em visita hoje (10/03) à terra dos Tabajaras - e a maioria dos insignes deputados da legislação federal de 2015/18 pelo indiscutível alcance da realização histórica em que se empenham neste mês de abril: com a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto Lei 4330 (depois, o projeto segue para o Senado), de desregulamentação sem peias do princípio organizativo da terceirização do trabalho, vocês acabam de decretar a sentença de morte do contrato social brasileiro, seja nos termos mais antigos da legislação trabalhista da CLT varguista de 1942/3, ou mais recentes, expressos nos capítulos de proteção social da Constituição - lembram-se? - “Cidadã” de 1988.
A tarefa do historiador é atar os fios de causalidade dos acontecimentos aparentemente desconexos do tempo. A partir do marco histórico da aprovação em regime de urgência do PL 4330, o capitalismo brasileiro se aproxima perigosamente de um padrão chinês (teria algum pudor em chamá-lo de asiático) de organização do mercado de trabalho, e se distancia, talvez em definitivo, dos padrões idealizados de regulamentação do Welfare State europeu, um dia sonhado pela tradição de muitos de nossos reformadores sociais, das mais diversificadas tinturas ideológicas - dos positivistas ao movimento operário anarcossindicalista da república velha, dos trabalhistas aos comunistas nos formidáveis anos construtivos da modernidade brasileira (que nos legou, em que pese as bases trágicas, criações indeléveis, a exemplo da eterna Bossa Nova à CLT, no momento sob violento ataque especulativo), do sindicalismo do ABC ao liberalismo antiditatorial de Ulysses Guimarães, constituídos no chão da sociedade civil emergente nos anos de chumbo da ditadura. 
Foi nisso e para isso que se gerou a energia política conservadora e de direita ativada nas manifestações de 15 de março? É para isso que se pretende emparedar o atrapalhado, mas com "culpa no cartório”, governo de Dilma Rousseff? Não adianta disfarçar as impressões digitais do governo no PL, afinal o guarda-livros Joaquim Levy esteve publicamente em tratativas com Eduardo Cunha terça-feira (07/03), buscando salvar a arrecadação do governo, pois uma das valias empresariais da terceirização consiste exatamente no aumentos das possibilidades da sonegação de impostos e contribuições. Pobre Dilma, mais parecida, neste segundo mandato, a uma espécie de “Kerensky de saias”, cuja bufa "base aliada” (?!) está para a farsa grotesca como o famoso “dispositivo militar” de Jango esteve para a tragédia anunciada em 1964. 
Não tomamos o famoso vôo fretado para Cuba, mas nos aproximamos da estação Pequim. Acaso aconteça (torço que a presidente crie coragem e vete a lei), após o hipotético e breve dia de promulgação do PL 4330 pela presidente Dilma, o Brasil será menos que uma república de bananas, um desses paraísos no qual a exploração do trabalho de extração de mais-valia dar-se-á pela legalização das formas sociais que os sociólogos Chico de Oliveira (Crítica da razão dualista) e Benjamin Coriat (Pensar pelo avesso), em démarches diferenciadas, o primeiro sobre a estrutura do setor de serviços no Brasil e no segundo sobre os “métodos flexíveis” das fábricas japonesas, chamaram de "formas do avesso”, ou seja, a exceção que se torna regra. 
A terceirização é exatamente uma das “formas do avesso”. Explico-me. No manual de economia política, a contratação da força de trabalho acontece de maneira individual e, partir dela, cria-se uma relação salarial. A partir de certo momento da evolução histórica, os trabalhadores perceberam que, embora a contratação do trabalho e a atribuição de salário fossem individuais, o processo de trabalho era coletivo. Por isso, através da criação dos sindicatos, uma instância coletiva de organização dos trabalhadores individuais, eles aumentaram o poder de negociação e barganha com o capital. Logo, chegou o Estado e regulamentou essas negociações, como também passou a arbitrar acordos. Estavam criadas as bases dos acordos monopolistas de classes, tácitos os explícitos, que permitiram as criações históricas do Welfate State europeu, ou mesmo a nossa contrapartida mitigada do varguismo (o lulismo não chegou a tanto). 
Como o próprio nome diz, a terceirização cria a figura de um “intermediário” na relação direta capital-trabalho, uma mediação de fantasia jurídica - a “Pessoa Jurídica” (PJ) individual, ou o empreiteiro contratante de lotes de mão de obra, disponibilizados no mercado em benefícios de terceiros (as empresas contratantes dos serviços especializados). Essa relação tem propósitos claros. Ela somente é necessária quando o objetivo é precarizar o trabalho. 
Sem novidades, tudo isso é antigo no Brasil, somos 12 milhões de trabalhadores precarizados (especialmente trabalhadores de “baixo”, envolvidos em atividades de limpeza, segurança e serviços hospitalares). A novidade do PL 4330 é de escala; ele, por assim dizer no "popular", "abre geral”. Doravante no Brasil, a terceirização passa a abranger não somente as “atividades-meio”, mas as “atividades-fim”, ou seja, todo o processo de trabalho. No limite, seguindo a lógica da lei, por paradoxo, poderemos vir a ter Universidades sem professores, jornais sem jornalistas, hospitais sem médicos, numa espécie de casa cheia e ao mesmo tempo sem ninguém - a aula, a notícia e o plantão serão fornidos por “terceiros”, trabalhadores estrangeiros à empresa. O realismo de Kakfa não imaginaria tanto. 
Se quiserem uma rima pobre, terceirização jamais criou civilização, nem direitos de cidadania, ao contrário da relação regulada capital-trabalho, de onde emergiram as experiências de Welfare State. No Brasil, o gênio maligno da terceirização esteve por muito tempo contido na garrafa. Agora, a Caixa de Pandora da miséria do trabalho se abriu, em futuro próximo reduzindo salários e a arrecadação das contribuições previdenciárias, aumentando exponencialmente os ritmos e os acidentes da jornada de trabalho. Mais uma vez, parabéns, Deputado Eduardo Cunha. Vencida a guerra pela posse das batatas, desfrute da hospitalidade de nosso povo ordeiro.  

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