Tocqueville e a “futilidade” da revolução
Jaldes Meneses
O pensador Alexis Tocqueville (1805/59), clássico incontornável da teoria política contemporânea, foi um contraponto liberal e aristocrático à tradição de republicanismo radical francês. Coube a ele elaborar no recesso político em pleno império de Napoleão III (1851-1871), de quem tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros, o argumento mais engenhoso e sofisticado, que deu viço a um novo tipo de pensamento conservador sobre a Revolução Francesa Desde então, o argumento fez fortuna e passou a ser repetido por um séquito numeroso de autores até díspares: Renan, Dilthey, Pareto, Croce, etc.
Qual é esse argumento? Observar que as mudanças produzidas pelas revoluções burguesas, à custa de sangue, já vinham sendo feitas, homeopaticamente, pelas monarquias absolutas, especialmente a centralização governativa necessária à formação do Estado nacional. Escreve Tocqueville “[...] outrora, no tempo em que tínhamos assembléias políticas na França, ouvi um orador falar na centralização administrativa, ‘esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja’. Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos inveje, mas sustento que não é uma conquista da Revolução. É, ao contrário, uma conquista do antigo regime, aliás, a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixar-se no novo estado social criado por esta revolução” (Tocqueville, O Antigo Regime e Revolução).
O desenvolvimento do argumento conduz à seguinte reflexão: não teria sido a luta dos jacobinos um sacrifício desnecessário? Não se pode apagar o passado, mas pode-se evitar a repetição no futuro. Tocqueville lançou a semente da dúvida: não teria sido dar uma base jurídico-constitucional às antigas monarquias em vez de tomar os céus de assalto? Ainda mais porque - e esse é o fundamento do sofisticado e sedutor argumento de Tocqueville -, ao final do processo, pela via cruenta ou pela via indolor, teríamos como resultado, tendo em vista as estruturas profundas do absolutismo na sociedade, no caso da formação histórica da França, o mesmo resultado de centralização do Estado.
Tocqueville nem abjurou, na totalidade, a obra da Revolução, especialmente seu caráter universal, nem viu nela precisamente um divisor de águas entre duas épocas históricas, mas lançou no mercado das idéias, conforme expressão de Albert Hirschman em “A retórica da intransigência" - um fino crítico de Tocqueville -, a tese da “futilidade” da revolução. Há um elemento novo na tese da futilidade: a distância no tempo. A tese da futilidade só pode aparecer como o vôo noturno da coruja de Minerva: a razão interpretando, a posteriori, o trabalho realizado pela história.
No que intitula de “Segundo Livro” de O antigo regime e a revolução, Tocqueville dedica-se a tentar desfazer o “mito” das profundas transformações efetuadas pela Revolução, a fundamentar a tese da futilidade. Não se propaga que os jacobinos fizeram uma revolução agrária, distribuindo terras ao camponês sem indenização ao proprietário? “É [...] cometer um erro comum pensar que a divisão da propriedade rural data da França e da Revolução: o fato é muito mais antigo”. O regime capitalista de produção só penetrou na França depois da Revolução? “[...] durante os sessenta anos que antecederam a Revolução Francesa, o número de operários dobrou enquanto a população em geral da cidade [Paris] só aumentou um terço”. Paremos as citações... a seqüência é enorme, envolve religião, democracia, burocracia, regime fiscal, etc. En Tocqueville, tudo o que a Revolução fez o absolutismo estava fazendo.
Reparemos no seguinte detalhe: a tese da futilidade da revolução “clássica” - quando há uma luta encarniçada pelo poder entre as novas e as velhas classes - é uma outra maneira de intitular o conceito de “revolução passiva” - a “revolução sem revolução”. Futilidade em Tocqueville - assim como revolução passiva em Gramsci -, dizem respeito à tematização de um mesmo tipo de processo histórico, com a diferença de ser, no primeiro, um programa político e, no segundo, ao contrário, ter um valor de advertência.
A arquitetura não está completa. Tocqueville foi profeta em relação ao passado com a tese da futilidade. Mas como ele foi profeta do futuro? A profecia em relação ao futuro foi formulada inclusive antes do estudo sobre a Revolução Francesa. Veio à lume em duas desovas - 1836 e 1840 -, nos dois volumes do clássico livro "A democracia na América”, onde encontramos o originalíssimo conceito de sociedade civil de Tocqueville, que vale um outro artigo.
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