Tocqueville: a sociedade civil como aristocracia



Jaldes Meneses

Na semana passada, abordei a questão da revolução em Alexis de Tocqueville. Nesta semana, encerrando esta série combinada de dois artigos contendo temas mais clássicos de teoria política, o tema é o interessante – e inusitado - conceito de sociedade civil em Tocqueville, privilegiado nos dois volumes de "A democracia na América”. 
No arcabouço de “A democracia na América”, a partir do contraponto com os Estados Unidos e a miríade de entidades civis de iniciativa autônoma em relação ao Estado, Tocqueville interpretava que estava se formando na Europa, desde o apogeu do absolutismo, uma combinação de despotismo, igualitarismo e centralização do Estado que negava o princípio da liberdade. A democracia dos modernos franceses, somente nas aparências, negava o absolutismo. Vale dizer, em resumo: o processo de instauração de regimes democráticos e republicanos na Europa, pela via revolucionária, não era um antídoto eficaz à tendência de despotismo manifesta subterraneamente nos novos Estados, visto que poderia se instaurar uma “ditadura da maioria”, cultora da igualdade, mas cerceadora da liberdade.

Questão complexa, não há como bem compreendê-la se não situarmos o interesse maior do pensamento de Tocqueville: seu ponto de vista é o da nobreza, da aristocracia, mas jamais o do monarca absolutista, ao contrário. Sem compreender esse dado elementar, o pensamento de Tocqueville não passa de um agregado de sombras. Conforme Tocqueville em “A democracia nas Américas", durante a vigência do absolutismo na Europa, “a força de alguns súditos erguia barreiras insuperáveis à tirania do príncipe [...] situados a uma distância imensa do povo, os nobres tinham, no entanto, pela sorte do povo, essa espécie de interesse benevolente e tranqüilo que o pastor denota ao seu rebanho; e, sem ver no pobre seu igual, velavam por seu destino, como se fosse um depósito posto pela Providência em suas mãos”.

Para Tocqueville, que nunca negou a sua classe, o princípio da liberdade no mundo medieval encontrava-se enraizado nas castas aristocráticas dos proprietários rurais – eram eles, os aristocratas, que faziam a mediação entre o monarca e as populações servis e controlavam as atitudes eventualmente autoritárias do monarca. Tocqueville é bastante diferente, por exemplo, de um Hegel em “A filosofia do Direito”, dado que, no filósofo alemão, esse papel de mediação era feito pelas corporações de ofício ou até pela Dieta (parlamento estamental), não pela aristocracia. Rigorosamente, na idealização tocquevilliana, a aristocracia era a única classe que criava indivíduos livres na sociedade feudal - guerreiros, virtuosos, devotados à causa pública.

O cerne da crítica ao absolutismo, em Tocqueville, consistiu na quebra do equilíbrio (das relações) de forças existentes na Alta Idade Média (séculos IV-XI). Apelando para uma relação direta com o servo da gleba, ou seja, a crítica ao absolutismo localiza-se exatamente no lado “progressista” do mesmo, em função do qual sua vigência abriu as portas para a emergência do novo modo de produção capitalista. Clarifica-se o objetivo da sofisticada abordagem tocquevilliana ao estudar in loco as organizações da sociedade civil norte-americana: substituir, na Europa, o vácuo deixado pela perda de poder da aristocracia, formando novas instituições que cumpram o mesmo papel de zelar pela liberdade, de maneira a coibir os excessos emanados do poder estatal.
Veja-se: em Tocqueville não se trata, como no caso de Gramsci, de um processo da transferência do poder e das funções do Estado para a sociedade civil. Tocqueville, tendo em mira o exemplo norte-americano, faz questão de distinguir a descentralização de governo da descentralização administrativa; para ele, o papel das associações civis e da auto-organização da sociedade radicava somente no segundo aspecto, ou seja, socializar a “política”, mas não o poder político (duas coisas bastante distintas). O autor reconhece - como arguto observador da ordem burguesa - que existe uma tensão entre o que chama de a “igualdade como condição” (o princípio de que todos, de todas as classes sociais, são iguais perante a lei) e a “igualdade como paixão” (o desejo de transformar a igualdade de condição, cujo alcance de legalidade é a igualdade civil, em um princípio isonômico, expansivo a todas as relações sociais existentes). Trata-se, portanto, de um autor conformista em dois âmbitos: de um lado, porque entregou os pontos da aristocracia para a burguesia, reconhecendo a derrota de sua classe; de outro, porque não acreditava que ocorreria com a burguesia o que ocorreu com a sua classe - a possibilidade do arresto do poder.


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