Florestan Fernandes (1920-1995)
Jaldes
Meneses
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Há vinte
anos, em um cinzento mês de agosto de 1995, acobertado de garoa paulista e na
época de começo e apogeu do primeiro governo Fernando Henrique, antigo
assistente de ensino do velho professor, morreu Florestan Fernandes, um dos
principais intelectuais brasileiros do século XX.
Professor
universitário e militante de esquerda, não se pode dizer que Florestan
Fernandes seja um autor esquecido. Unanimemente lembrado na galeria de uma
geração de pensadores do tope de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda,
Nelson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido e Celso Furtado - autores
que lograram formular interpretações originais do Brasil -, Fernandes legou ao
pensamento social brasileiro uma vasta e densa obra de mais de trinta títulos,
da qual certamente o mais importante é a obra-prima “Revolução Burguesa no
Brasil”, escrita entre 1965 e 1974, no Brasil e no Canadá.
Mas não só
isso. O conteúdo explosivo e radical da obra vinda a lume em 1974, quando
começávamos a viver o ocaso da ditadura, significou também uma viragem no
pensamento de Fernandes. A partir daquele momento, conquanto não sem
crispações, o militante radical abandona a pele de influente sociólogo
funcionalista - cultor de um “ecletismo bem temperado”, interessante expressão
de seu ex-aluno Gabriel Cohn –, mestre de vários discípulos intelectuais
conhecidos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, José de Souza Martins,
Maria Sylvia de Carvalho Franco), e parte para o combate de peito aberto à
ditadura com as armas da teoria marxista. Contudo, não o marxismo dos salões -
que vive da citação do autor francês em moda -, mas um marxismo hard,
revolucionário, fundamentado, principalmente, em Marx, Engels, Lênin, Trotsky e
Gramsci, entre os principais. Entre parêntesis, não posso deixar de comentar
que, para mim, “Revolução burguesa...” é mais um ponto de chegada histórico e
intelectual que de partida – assunto incompreendido por muitos comentaristas
atuais do autor paulista -, contudo não posso me demorar em assunto tão
complicado. Fica a nota, quem sabe para um artigo específico vindouro.
Embora
Fernandes não seja um autor esquecido não se pode afirmar que seja um autor bem
lido. Caso continuasse, na segunda fase de sua obra, o competente cultor do
ecletismo bem temperado - a engenhosa fusão feita pela sociologia paulista, sob
o comando do próprio Florestan, de Marx, Weber e Durkheim -, certamente seria
um autor mais palatável pelo establishment acadêmico da sociologia brasileira.
À medida que foi radicalizando
seu marxismo (e A Revolução Burguesa no Brasil simboliza a definitiva
radicalização teórica e política de Fernandes), desbastando-se das impostações
da sociologia de salão, criador e criatura foram progressivamente abrindo um
processo de litígio. Enquanto a criatura (a sociologia) se profissionaliza,
busca uma vaga bem comportada na divisão sócio-técnica do trabalho desatada
pelo amadurecimento do capitalismo brasileiro, o criador (Florestan) se
radicaliza progressivamente, até morrer na posição de desconfiança mútua dentro
do próprio PT, combatendo o processo de social-democratização do partido ao
qual doou o melhor de suas energias intelectuais na última fase da vida.
A opção
teórica e existencial de Fernandes pelo marxismo processou-se um por via
bastante pessoal e original. O peculiar marxismo de Fernandes possui uma dicção
própria surpreendente: ele é eivado, na exposição, da presença epidérmica de
expressões hauridas da sociologia estrutural-funcionalista americana. Do meu
ponto de vista, porém, conquanto a exposição esteja permeada da nomenclatura
haurida do estrutural-funcionalismo, a investigação é feita sob os auspícios de
um método dialético de análise. Tudo isso significa que não foi fácil para
Fernandes realizar a travessia fundamental entre os dois momentos de sua obra:
entre o ecletismo bem temperado (Marx, Weber e Durkheim) e o marxismo.
Parece-me
que havia em Florestan uma disjuntiva de alta complexidade, até hoje
incompreendida por muitos: no plano estritamente político Fernandes sempre
esteve situado à esquerda e professou o marxismo, mas, no plano conceitual, a
passagem para o marxismo realizou-se em um longo prazo e com crispações de
pensamento, revelado pelo resíduo funcionalista no plano da exposição. Num
depoimento datado de 1980, colhido por José Chasin em visita do professor à
Paraíba, diz o próprio Florestan “(...) durante algum tempo, eu corri o risco
de palmilhar o caminho (...) de pulverizar as ciências e de procurar uma falsa
autonomia das ciências. Eu teria entrado por um mau caminho. O que me salvou
foi a impregnação marxista da minha relação prática com os problemas da
sociedade brasileira (...)”
Com essas
premissas metodológicas e teóricas, ao lado de autores da estripe de um Celso
Furtado e André Grunder Frank, Florestan foi fundo na radicalização teórica do
conceito de dependência, e a partir daí formulou as bases finais de sua
démarche sobre o processo de revolução burguesa no Brasil. Não é o caso de
aprofundar o conceito de dependência haurido por Florestan neste espaço de
jornal, mas de persuadir o leitor da riqueza teórica e da atualidade da obra do
grande professor para entender o Brasil. Florestan vive. Saudades de sua
presença, a quem tive o prazer de conhecer através dos livros, no cenário
intelectual brasileiro.
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