Greve nas Universidades e Trabalho Docente
No momento em que escrevo este artigo, os docentes de várias universidades federais - entre as quais a UFPB - estão em greve. A pauta são os salários, a correção das distorções da carreira docente e mais verbas de financiamento do custeio das instituições públicas.
Pretendo escrever dois artigos sobre o cenário de fundo dos motivos da greve. Neste primeiro, gostaria de glosar a questão do trabalho intelectual docente. Na próxima semana, o assunto serão as balizas mestras das políticas educacionais do período de governos Lula-Dilma, desde a abertura de nosso sistema de ensino superior ao capital multinacional até os resultados articulados e sistêmicos dos programas Reuni, Prouni, Pronatec e Fies. Muita coisa mudou nos anos recentes.
Só há como abordar o tema da (des)valorização do trabalho docente inserido no contexto das transformações do capitalismo contemporâneo e dos sistemas de ciência e tecnologia. Ao tratarmos de uma campanha salarial e de uma greve das universidades federais, em um país como o Brasil, que possui um dos 16 sistemas de produção de ciência do mundo, e o maior da América Latina, mais de 90% nas universidades públicas, é quando aquilatamos a dimensão global do processo no qual estamos inseridos.
Trabalho intelectual-cerebral é a principal forma emergente do trabalho vivo hoje. É difícil, porém, mensurar formalmente o trabalho intelectual, ao menos seguindo a maneira das formas clássicas do capitalismo monopolista do século XX, baseado no fluxo do tempo de produção de mercadorias junto a uma linha de montagem automatizada, com uma divisão de trabalho bem delimitada entre executores e executantes, dirigentes e dirigidos. Pode até parecer aos incautos que o trabalho intelectual seja improdutivo, mas o fato objetivo é precisamente o inverso: o trabalho intelectual extrapola, trata de uma atividade eminentemente cerebral, criativa, afetiva (não pensamos somente na pesquisa, mas também no ensino), produz exatamente a desmedida do valor porque é mais do que ele, e não menos, o que não pode ser mensurado com as técnicas convencionais de medição da produtividade quando estas se baseavam no taylorismo e no fordismo. O que significa, portanto, a valorização do trabalho docente, se ele extrapola, para mais e não para menos, a medida de valor? A política decide a distribuição da des-medida de riqueza, as maneiras de partilha do excedente social. Saliento que estou longe de negar Marx, mas exatamente o contrário: o valor continua a vigorar, inclusive porque ele continua a reger até mesmo a lógica racional das atividades de trabalho que extrapolam a clássica divisão do trabalho do modo de produção capitalista, tanto na esfera da produção como da reprodução.
Do meu ponto de vista, as vicissitudes do trabalho intelectual contemporâneo, em lugar de destruir, atualizam – certamente de maneira modificada –, a organização sindical do trabalho. Contudo, esta é uma questão em disputa entre várias percepções e projetos políticos, especialmente entre os que vêem o trabalho docente sob uma perspectiva individualista, solitária, e os que vêem sob uma perspectiva coletiva, solidária; entre os que não detectaram ainda os controles externos (Estado e capital, principalmente) e os que se insurgem contra estes mesmos controles. Enfim, não se trata de uma disputa entre “produtivos” e “improdutivos” – até porque o rigor intelectual pode ser encontrado em ambos os lados –, mas entre os que reconhecem como uma das dimensões inelimináveis do cotidiano universitário as problemáticas atinentes à profissão e ao trabalho e os que, na prática, denegam esta dimensão, muitas vezes se acostando subjetivamente no cultivo de um ideal morto de ciência neutra. O trabalho intelectual-cerebral como trabalho alienado.
Começamos a ter em presença, atualmente, nas universidades públicas – e o debate subterrâneo de adesão da categoria docente à greve demonstrou isso –, um conflito entre o projeto de constituição da categoria como sujeito coletivo de trabalho e uma percepção conformista da Universidade como o loci de um trabalho de tipo artesanal, que existe somente como resíduo e ideologia. O que tudo isso tem a ver com carreira docente? A primeira carreira docente que tivemos na modernidade (passada a grande crise da Universidade na época do iluminismo) foi a da Universidade alemã, hierarquizada e organizada sob as bases de uma divisão artesanal do trabalho (professor catedrático, assistente e auxiliar), que tinha mais a ver com divisão de poder do que trabalho. Com diferenças nacionais importantes, de alguma maneira, a nomenclatura alemã foi exportada para a Universidade francesa e norte-americana e inclusive a brasileira.
No entanto, no Brasil, na prática, subvertemos a hierarquia estamental do trabalho universitário tradicional. Qual é mesmo a diferença real de trabalho nas Universidades federais brasileiras entre o professor auxiliar (começo da carreira) e o associado ou titular (ápice)? Difícil perceber. Pode-se argüir, com razão, que o professor-associado trata-se de um doutor, e que a partir da titulação tem acesso à concorrência em pesquisa. Perfeito. Porém, a prerrogativa de acesso aos editais de pesquisa, necessário a partir de certo patamar de conhecimento demonstrado, trata-se de uma atividade de pesquisador, que sem dúvida é um plus, mas não constitui rigorosamente diferença hierárquica em relação aos seus colegas de atividade laboral. A não ser como ideologia de diferenciação.
Na verdade, o trabalho do pesquisador se assemelha mais ao de um técnico do que o de um intelectual clássico (figura histórica hoje rara de cujo ethos talvez tivesse sentido cobrar uma hierarquia de carreira). Para pontuar e concorrer aos editais, o novo técnico tem mais que se inserir em uma agenda de pesquisa internacional, reconhecer um nicho do conhecimento e se integrar nele, do que propriamente cultivar o espírito (se ambos coadunarem, ótimo). Não há demérito algum na atitude salutar de se integrar a uma agenda ou paradigma de pesquisa, ao contrário, pois assim, se podemos definir, nos tornamos mais “coletivos” e menos “artesanais”, mais divisão social (e intelectual) do trabalho do que solidão.
* Professor Associado III (CCHLA-UFPB) e Presidente da ADUFPB.
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