A imaginação econômica


Jaldes Meneses
Não sou especialista em economia. Por vocação, muito jovem, preferi a leitura dos clássicos de política aos de economia. Mesmo em Marx, que comecei a ler no secundário, me senti mais à vontade na leitura e no estudo dos textos de filosofia, política e história.

Deixem-me cometer, por assim dizer, uma nota confessional. Meu primeiro livro marxista, até hoje lembro, não foi de Marx, mas de Engels, "A origem da família da propriedade privada e do Estado”, na memorável tradução de Leandro Konder, editado pela Civilização Brasileira de Ênio Silveira. Tenho o exemplar guardado, na estante e no coração, até hoje. Anotei besteiras desentendidas nas margens do livro, na caligrafia incerta de adolescente. Em Jaguaribe, nos tempos da ditadura, esses estranhamentos eram possíveis e até prováveis, embalados ao som de rock progressivo e dos tropicalistas. Contudo, logo percebi que no mundo dos homens - uma das grandes percepções de Marx - é-se impossível separar economia, política e história.

A partir dessa compreensão, parti avidamente para fazer o dever de casa em teoria econômica e em economia política (dois objetos distintos). Não li simplesmente os textos de economia de Marx e de muitos dos principais marxistas, a exemplo de Paul Baran, Paul Sweezy e Ernest Mandel, cujas leituras me impressionaram, embora não concorde nem com a teoria do excedente (Baran e Sweezy), nem muito menos com as “ondas longas” (Mandel). Conheço relativamente bem os principais escritos de Keynes e de vários economistas que fizeram o cruzamento entre marxismo e keynesianismo, a exemplo de M. Kalecki, Joan Robinson e a tradição brasileira inaugurada por Celso Furtado, além dos distintos (e antagônicos) teóricos latino-americanos da dependência. Durante esses anos todos de vida acadêmica, tive a ventura de me beneficiar de contatos intelectuais, aprendi com as excelentes aulas do professor José Paulo Netto e os vários momentos de interlocução intelectual com este grande brasileiro, o professor Francisco de Oliveira.

Sei que as teorias e os autores mencionados do arco da velha, a maioria dos quais “perigosos (neo)marxistas” de origem na esquerda keynesiana do pós-guerra podem parecer fantasmas empoeirados do passado dos "tempos gloriosos" da estabilidade capitalista, estando portanto distantes de compor o mainstream hoje dominante em teoria econômica. Entretanto, sei também que, nos anos recentes, no âmbito do mainstream, vários autores relevantes – principalmente após os acontecimentos da crise de 2008 -, começaram a fazer duras críticas ao manual dominante nas instituições internacionais em economia, universitárias ou estatais. Não estou a mencionar marxistas críticos, mas liberais, no sentido norte americano da palavra - ou seja, “esquerda” no espectro político daquele país –, James Galbraith, Paul Krugman e Joseph Stiglitz, entre muitos de uma galeria de ilustres homens de ciência. Alguns se impressionam com currículos, comendas e argumentos de autoridade, pois saiba que Krugman e Stiglitz são prêmios Nobel. Neste ínterim, não posso esquecer-me de citar o best-seller internacional – e brasileiro –  Thomas Piketty, o cruzado da taxação das grandes fortunas. Já são quatro mosqueteiros. Existem muitos outros no pelotão de trás do esquadrão. A leitura dos humores do "espírito do tempo" me diz que a fileira dos economistas críticos tende a crescer.  

Serei claro: é muito difícil construir pensamento crítico em economia mais por razões de poder e menos de teoria pura. Há de ser, neste caso, um tanto contrafatual e fazer ciência ao estilo de Galileu ou Bruno Giordano. Ainda bem que as fogueiras e as torturas de Torquemada foram desativadas - por enquanto?

Quando se está ao lado do poder, o pensamento se aproxima perigosamente do senso comum. Quase sempre, quando vejo ou escuto o Sardenberg ou a Miriam Leitão na CBN ou na televisão – duas sumidades econômicas –, repetirem, munidos da convicção que Deus ($) lhes deu, que a contabilidade pública compartilha exatamente da mesma racionalidade da economia doméstica da dona de casa, não deixo de sorrir. Logo me entristeço, no entanto, quando escuto a mesma concepção vinda de intelectuais. Como ser intelectual desprovido de imaginação e vendido à jaula de ferro do senso comum?

Já li e vi pessoas “cultas” comparando, em devaneio racista, a imagem do “produtivo" trabalhador alemão ao “vagabundo” (ah, os estereótipos ideológicos de La dolce vita!) trabalhador grego. Essas pessoas se esquecem (embaidas das viseiras do sendo comum), não haver parâmetros, numa economia capitalista, entre os trabalhos –  assim considerados brutos –, de distintas sociedades. Estamos falando de uma economia que funciona em outros termos, sob o talante da racionalidade do trabalho abstrato e da mercadoria, da produtividade científica dos métodos de organização do trabalho e do mercado. 

Pergunto aos novos racistas, acaso raciocinemos nos mesmo termos chulos: quem despendeu mais esforço físico ao longo da vida, a dona de casa sua mãe ou, digamos, Albert Einstein; um rude camponês do interior da Grécia (mas o alvo do preconceito poderia ser do nosso nordeste) ou Angela Merkel? São parâmetros de produtividade diferentes. Nem o grande Einstein nem a autoritária Merkel (essa nada produz, senão discursos) estão com as mãos sujas nem calejadas, mas a nossa mãe dona de casa à antiga ou o hipotético camponês grego (ou nordestino) foram adestrados pelo labor do trabalho doméstico e manual.

Estou longe de conceber que essas metáforas sentimentais mal compostas resolvem a questão- a produtividade do trabalho abstrato alemã é realmente maior que a grega. Contudo, nada disso tem a ver que nenhuma superioridade cultural atávica - e olha que os elementos fundantes da racionalidade moderna despontaram na Grécia. Diz respeito, quando muito, à questão histórica de uma superioridade circunstancial - e relativa - do controle da mesma técnica (visto que Alemanha e Grécia partilham na mesma civilização), bem como do circunstancial trajeto das instituições que a embalam.  

Apenas, neste caso, estou demonstrando que, no fundo, o raciocínio simplista de certa esquerda obreira em louvor ao trabalho manual e a uma suposta superioridade do trabalhador braçal (de que a representação estética do realismo socialista, nos tempos do stalinismo, foi uma trágica perversão), tida corretamente como simplória, vem a compadrir, em sinal introverso e trocado, a representação racista de uma direita pseudo bem pensante brasileira - como sempre, arrotando as novidades de Miami. Nos tempos de Machado de Assis, ao menos a referência mimética de civilização da elite dominante, embora "fora do lugar" - porém devidamente adaptado aos trópicos - eram Londres e Paris, ao menos mais ornamentais na etiqueta vitoriana ou da Belle Époque

É verdade que todos nós, sem exceção à regra, parvos ou cultos, funcionamos essencialmente por senso comum, os automatismos da cultura, senão talvez a vida em sociedade fosse inviável. Porém, funcionar apenas por senso comum nada mais é que uma grave carência intelectual, quando se sabe que a passagem pela universidade e a escola, portanto o acesso  ao métodos do conhecimento crítico, da cultura e da ciência, visam nos apresentar a um tipo de racionalidade mais exigente. Deveríamos aprender a saber que, para resumir citando um ditado popular, "às vezes, as aparências enganam."

Tomei um atalho. Retorno mais diretamente ao assunto que provocou o artigo. Se a pretensão é sofisticar a análise, logo o analista perceberá que o problema da unificação dos, historicamente, deslocados países do sul da União Européia (Grécia, Portugal e, em menor grau, Itália e Espanha) numa moeda única, o Euro, padece, na origem em 2002, de dois problemas. O primeiro, os economistas recitam em consenso, de neoliberais a certos neokeynesianos, à maneira de um mistério insolúvel: qual a vantagem de unificar sob o mesmo chão artificial de uma moeda comum economias em processo de modernização e outras tecnologicamente avançadas, feito a Alemanha, e, no entanto, manter regimes fiscais diferenciados? A televisão enuncia a diariamente a contradição. Cadê responder?

O senso comum, nos noticiários, reduz a unificação política e monetária à boa vontade (?) da elite alemã e francesa, principalmente, para com os parceiros atrasados da Europa, ainda mais quando o assunto se trata de integrar a corrupta elite grega - nada a ver com o Syriza, diga-se de passagem, pois este partido ganhou uma eleição surpreendente no começo do ano. O problema conjuntural grego vem pelo menos desde a crise de 2008.

Ah!, o mundo é fácil, a economia doméstica explica as relações internacionais, pensa o nosso querido simpatizante tucano, altamente escolarizado. Por este senso comum, a relação de forças na União Européia seriam idílicas, os ricos ajudando os pobres. Ou, será que, pelo avesso do avesso, os ricos requisitam os pobres? A rica Alemanha precisa da pobre Grécia? 

Começo a responder à segunda questão, fechando o artigo: o tema foi explicado, em outras circunstâncias, pelo velho Raúl Prebisch (um antiperonista avesso ao marxismo) no remoto ano de 1949, no escritório da Cepal, em Santiago do Chile: a economia mais rica, para expandir e reproduzir, precisa, antes de tudo, instaurar relações desiguais de troca, trocar (sugar) tecnologia avançada por serviços de turismo (Grécia), ou manufaturas por produtos agrícolas (Brasil de 1950). O avançado está longe de ser indiferente ao "atrasado", ao contrário, o "funcionaliza" (by Chico de Oliveira) submetendo e extraindo até a última gota de sangue trabalho primitivo, "vagabundo".

Se as relações acaso fossem de fato igualitárias – o "vagabundo" trabalhador grego não permutasse a acumulação primitiva de seu trabalho menos produtivo (semi, sub ou não capitalista) com o produtivo trabalhador alemão  –, as relações de alta produtividade não subordinariam o excedente de trabalho físico subdesenvolvido. Acabaria a igualdade formal dos diferentes, este fantástico propulsor do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. 

Em suma, para haver uma única "Alemanha", ato contínuo é preciso haver várias "Grécias". 

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