Poesia e política: Benjamin e Baudelaire
Jaldes Meneses
email: jaldesm@uol.com.br
Na coluna da
semana passada, escrevi sobre Vinicius de Morais e a política aproveitando o
ensejo dos 35 anos da morte do “poetinha”, recordada no dia 9 de junho.
Remexendo livros, dou de cara com a data de nascimento de Walter Benjamin no
dia 15 desse mês (1892). Deixo o assunto da chanchada do “golpe” boçal e
judiciário dos tucanos para outra ocasião. O meu assunto de hoje é mais nobre, trata-se
de mais uma tentativa incidental e pessoal de abordar a relação entre poesia e
política através de uma rápida exegese de dois autores geniais de gerações
diferentes e formações culturais distintas que, obviamente, nunca se conheceram
pessoalmente, mas que acabaram por se entranhar até virar duas almas gêmeas -
Walter Benjamin e Charles Baudelaire.
Comecemos
por Baudelaire para chegar a Benjamin. Teria muito a dizer sobre a poesia de
Charles Baudelaire, o grande poeta francês cantor da modernidade, e pode-se
afirmar que há múltiplos baudelaires: além de vida pessoal aventurosa, ele é um
desses personagens da literatura sujeitos a uma miríade de estereótipos, ao
acaso revelador mais dos leitores do que do próprio poeta. Muitas vezes, ele é
pintado como um “poeta maldito”, aproximado do esoterismo, dos vícios e do mal.
Com efeito, Baudelaire aventurou-se nos paraísos artificiais do vinho, do
haxixe e do ópio.
Decerto, residem na fama de
maldito muitos dos elementos da notoriedade do poeta e do fascínio de sua
recepção no século XX, e ainda hoje. Recordemos a admiração nutrida por Jim
Morrison (The Doors), para ficar apenas em um exemplo da contracultura dos anos
sessenta. Nesta apreciação, Baudelaire aparece como um romântico, uma espécie
de sucessor geracional retardatário de William Blake (poeta romântico inglês),
o que rigorosamente nunca foi.
O poeta
francês afastou-se o mais que pôde do ethos romântico, dos mitos arquétipos de
fundação da comunidade nacional (a pedra de toque do projeto político dos
diversos romantismos), da cultura popular, e formulou por meio de uma linguagem
emergente e obscura um projeto poético em processo de afastamento do
romantismo: acolheu o homem comum moderno em sua poesia, como observou T. S.
Eliot. Por outro lado, ao acolher o homem moderno, e isto é fundamental, ele
não trouxe a linguagem das ruas à forma poética, mas procurou transfigurá-la em
uma expressão íntima, para muitos até exageradamente rebuscada. (Brecht, por
exemplo, detestava as firulas de linguagem de Baudelaire). Vale dizer:
Baudelaire é totalmente avesso ao prosaísmo em poesia, tão em voga atualmente.
Em registro
distinto do da contracultura, mais matizado, temos o Baudelaire de Walter
Benjamin (Um lírico no auge do capitalismo), continuado na tradição marxista de
Marshall Berman (Tudo que é sólido desmancha no ar) e Dolph Oehler (Quadros
parisienses). Ora, se é verdadeiro que Benjamin foi o mais alternativo e
místico dos marxistas, em seu prazer pelo ópio e sua relação com a cabala, no
que guarda relação de vizinhança com a versão de Baudelaire como “poeta
maldito”, o acento do (proto)frankfurtiano (e também dos sucessores no marco
teórico) é outro: a trajetória de Baudelaire é descrita – ao menos em alguns
momentos de sua trajetória (tanto como critico literário como poeta) –, como um
cronista espontâneo da modernidade e da técnica capitalista; um poeta que
compôs pastorais dialéticas, devidamente cifradas, à espera de um hermeneuta,
das multidões que superlotam praças e avenidas de uma metrópole como Paris.
Tido e havido,
por muitas décadas, como escritor apolítico – aliás, esta é a versão de Sartre
–, a leitura benjaminiana de Baudelaire inverte os sinais do senso comum:
aproxima à poética baudelaireana da crítica da economia política efetuada por
Marx, no que a obra dos grandes artistas modernos, discrepantes da tradição do
romance realista do século XIX (a exemplo de Baudelaire, Proust e Kafka) pôde
inclusive ser resgatada em viés anticapitalista.
Vou tentar resumir, nos limites
de um texto curto, a versão de Benjamin. O crítico alemão liga o estudo de
Baudelaire à problemática das dificuldades da experiência e da memória na
modernidade. Para ele, já não há possibilidade de transmissão orgânica da
cultura pelas formas da narrativa tradicional, oral ou mesmo escrita, donde a
própria impossibilidade de vivermos a contento, de maneira direita, a plenitude
da experiência lírica. Pois bem, conforme Benjamin há em Baudelaire o exercício
de uma estratégia de reviver a possibilidade da experiência lírica, embora
indiretamente: através do processo de choque.
O que
significa isto, que a tantos confunde? O “choque” vem a ser uma maneira de
proteção da psique dos impulsos externos ao sujeito individual, ou seja, um
mecanismo de defesa, a técnica de uma pessoa que submeteu o sistema sensorial a
um treinamento de natureza complexa. Dessa maneira, a nova poética de
Baudelaire seria a elaboração, sublimação, no campo da estrutura formal de um
poema, da experiência do choque moderno, nas descargas incessantes de novidades
(apelos materiais e imagéticos) a que somos submetidos pela experiência da
modernidade.
Da noção
freudiana de choque, extraída da análise de Baudelaire, Benjamin deriva uma
particular noção de tempo. Com efeito, Benjamin postula a uma temporalidade que
recusa a continuidade, ou mesmo a noção de processo; nesta, o passado
encontra-se soterrado no presente, mas tem a propriedade de emergir de súbito.
Em uma pequena digressão sobre a passagem mais conhecida de "Em busca do
tempo perdido”, Benjamin pôde elucidar esta relação entre tempo, memória,
experiência e choque: Proust conta que tinha dificuldades (um bloqueio) em
recordar de sua infância, passada na cidade provinciana de Combray, mas em
determinada ocasião ele sente o cheiro (um choque) de um bolo de chocolate similar
ao de sua infância. Dimana daí o fio da memória do narrador, significando duas
coisas: a materialidade, o presentismo e a atualidade da memória e do próprio
passado, interveniente direto pela realidade do bolo e o simbolismo desatado
pelo narrador- memorialista.
Admirável, a
inspiradora leitura politizada de Walter Benjamin e seu possante núcleo ativo –
a idéia do estranhamento provocado pela alegoria como os deslocamentos da
forma-mercadoria. Grande crítico literário, as idéias de Benjamin sobre Baudelaire
são tão poderosas que desentranhou da poesia de Baudelaire o que talvez sequer
o poeta tivesse conhecimento de si mesmo e de seu mundo - a aventurosa de “um
passante” na Paris da aurora da Modernidade capitalista. Grande poeta, grande
leitor crítico.
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