Antonio Cicero: a lira dos setenta anos
Jaldes Meneses
Temos o privilégio de sermos contemporâneos de uma geração de artistas brasileiros, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Maria Bethânia que atravessaram o umbral dos 70 anos ativos na felicidade de conservar o elixir dos mais finos perfumes. No dia 6 de outubro, o poeta, letrista e filósofo Antonio Cicero completou 70 anos. Devem perguntar os que não conhecem - quem é Antonio Cicero?
Por falta de espaço, privilegiarei nesta coluna a filosofia de Cicero. Há dois grandes temas coligados na obra filosófica, ainda em curso, do autor: o conceito de modernidade e, por extensão, a estética ou, melhor dizendo, as presumíveis configurações de uma estética da modernidade.
No tocante à modernidade, ele opera com a tentativa de formular um conceito rigoroso, trans-histórico, desbordando do meramente descritivo, o que não chega a ser precisamente um ineditismo, pois assim agindo, na verdade, ele está resgatando as melhores tradições ilustradas do iluminismo do século XVIII.
Alguns incautos pensam que modernidade significa o culto ao novo – esta definição caberia melhor aposto ao conceito de vanguarda. A modernidade veio a constituir um tempo histórico que incorporou, efetuando recortes e atualizações (incorporamos o espírito trágico, mas abrimos mão dos rituais sagrados de sacrifício), elementos arcaicos e do cânon clássico ocidental, sem problemas nem preconceitos, à maneira de uma grande válvula de sucção. Queremos ser modernos e helênicos e não anacronicamente helênicos. Neste sentido, em dois exemplos escolhidos ao acaso, a poética de Homero ou a teoria da graça de Santo Agostinho podem conter elementos de modernidade e, através de um saudável revisionismo histórico, serem trazidos ao terreno do contemporâneo e valorizados como criações de um espírito universal, em complexo processo de memória e autoconsciência do desenvolvimento da humanidade, na acepção humanista de Lukács.
A questão central, para além do basbaque culto ao novo, foi levantada por Kant em seus ensaios sobre o iluminismo: a modernidade estabelece uma relação horizontal (Sérgio Paulo Rouanet chama de sagital, em seta, repetindo, neste caso, o seminal Foucault da fase pouco antes de morrer) entre tempo e cultura, ao passo que em outros tempos históricos a relação era vertical, no sentido passado-presente. Conforme Foucault, o dado novo da modernidade consistiria, a partir de Kant, em não conceber mais a relação ao presente em termos de relação de valor (estamos em um período de “decadência” ou de “prosperidade”), não longitudinalmente, mas como uma relação sagital à própria atualidade. Escreve Foucault: “a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade”.
Dessa maneira, a originalidade do espírito de tempo estaria no reconhecimento da modernidade como um agora permanente, ou seja, um ethos calcado na transitoriedade das coisas como a essência do mundo. Por isso, aliás, que o primeiro iluminismo nomeou a si mesmo, mais que um acontecimento histórico, como um evento na história do pensamento.
Ao admitir o absoluto, mesmo sob a forma do transitório, Cicero escapa das tentações relativistas e nominalistas dos cultores da pós-modernidade, que adotam a posição do agora, porém – e esta diferença é fundamental, divisora de campos – como a ausência do absoluto. Nada disso: em Antonio Cicero, o absoluto é a transitoriedade. Operação demarcadora de campos, como se vê: conceituar a modernidade como o fundamento de um absoluto vislumbra a possibilidade de pensar uma ética da modernidade, inclusive em seus aspectos normativos. Neste aspecto, ao postular na continuidade da racionalidade (na acepção de Kant), a razão no começo dos tempos revelou-se privada, como, digamos, uma (proto)modernidade, e depois se espraiou para a vida pública o caráter transhistórico da modernidade, Antonio Cicero assesta o alvo contra os vários relativismos e historicismos. Recordo, aqui, da polêmica de Thomas Paine (Os direitos do homem) contra Edmund Burke (Reflexões sobre a revolução na França), no alvorecer da Revolução Francesa de 1789, no manifesto Os direitos do homem, no qual o primeiro afirma, contra o segundo, que o fundamento do direito não é o costume ou a história pretérita da nação, mas o absoluto. Conforme o filósofo carioca, conceitos historicistas como nação, raça, costumes – ou mesmo a idéia ancestral de Deus –, embora vigentes, não devem ser aceitos como modernos, posto que desloque a formação da subjetividade da consciência de si (Hegel) ou do aparentado cuidado de si (Foucault), do autocontrole, da autonomia, para objetos exteriores e positivos, fixados na força opressora do passado e da norma imposta.
Por outro lado, em sendo o agora um absoluto, não somente nos tempos modernos esta percepção se manifestou. Daí a postulação trans-histórica de Antonio Cicero: podem-se encontrar elementos de modernidade em tempos remotos. Para ele, de alguma maneira, modernidade significa processo de racionalização (Weber e Habermas, entre muitos, também pensaram a modernidade como racionalização), autorizando o sentido mais abrangente dado ao termo, posto que racionalização, em ultima instância, constitui uma característica ontopsíquica do homem. Vem daí a distinção, tornada célebre por Horkheimer e Adorno, em nota pessimista (discrepante do otimismo trágico que imputamos à démarche de Cicero), entre esclarecimento (processo geral de racionalização) e iluminismo (movimento intelectual do século XVIII).
De sua original filosofia da modernidade Antonio Cicero se dedica à música popular. Por ventura das coisas nossas, no Brasil, filosofia dá em samba, rock e balada…
Fonte: Jornal A UNIÃO, 23/10/2015
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W. J. Solha